a Sobre o tempo que passa: Isaltino, Sócrates e a Viradeira: não, não é o povo quem mais ordena!

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

4.8.09

Isaltino, Sócrates e a Viradeira: não, não é o povo quem mais ordena!


Com a sentença sobre alguns dos actos da vida pública de Isaltino Morais, o transmontano, que não é marquês de Oeiras nem conde de Pombal, poderá ter começado uma nova era para os émulos de Sebastião José. Onde há um pretexto para que algo mude, mas onde tudo pode continuar a ser como era. O problema não é da lei nem das magistraturas. Repito Cícero: "nem tudo o que é lícito é honesto". E Isaltino sabe que a respectiva conduta é igual, ou muito semelhante, à de muitos outros que agora lavam as mãos como Pilatos ou emitem críticas a este ex-ministro de Barroso.


A partir de hoje os ministros, os autarcas e os deputados já não são o que foram e não podem voltar a ser o que eram. O que vão ser não depende da licitude, das polícias, das prisões ou dos tribunais. O que vão ser só Deus sabe. Mas o eleitorado pode ajudar. A não ser que queira continuar a ter os ministros, os autarcas e os deputados que merece. Isaltino é mera consequência dos oeirenses e das suas forças vivas.


Isaltino diz-se bode expiatório. Os julgadores podem ter elevado o caso a paradigma. Depois de tantos apitos que não apitaram. Depois de tantas primeiras páginas de diários e semanários ainda em fase de investigação, muitas já definitivamente arquivadas, outras tantas já prescritas e apenas uma restrita fatia levada até à barra do trânsito em julgado, com absolvição e consequente certidão, porque "in dubio pro reo".


Oeiras não é um concelho qualquer. Isaltino é, de base, magistrado do ministério público. Antigo docente na Faculdade de Direito de Lisboa. Figura grada de um dos principais partidos portugueses. Elevado a principal dos ministros por Durão Barroso. Um potencial Alberto João Jardim da eventual região metropolitana de Lisboa.


É, sobretudo, um profundo conhecedor de todos os meandros da partidocracia e das novas forças vivas do regime. Mais do que simpático é pessoalmente sedutor, com excelente relação directa com um eleitorado complexo, interclassista. É um dos melhores exemplos da classe política pós-revolucionária.


A condenação a sete anos de prisão efectiva é uma condenação por práticas que não são exclusivas do autarca oeirense que todos os dias trabalha sob o retrato do seu inspirador, Sebastião José de Carvalho e Melo. E corre também o risco de sofrer os efeitos da viradeira. E de ser remetido para o espaço público, ou privado, de um qualquer reduto crepuscular.


Nada tenho de pessoal contra a criatura. Dele apenas recebi boas palavras. Mesmo quando numa discoteca levou a que uma turma inteira de uma escola pré-universitária pública assinasse a ficha da JSD, entre os quais o meu filhote, a troco de uísques que prodigamente pagava à notada, nesses excessos de familiariedade que tanto lhe davam para o melhor quanto para o pior. Mas não havia ninguém na máquina do PSD que pudesse dizer que não viu, não olhou e não viu.


Toda a estrutura caciqueira dos grandes partidos da nossa democracia vive de Isaltinos. De Isaltinos grande e de obra feita, como aquele que agora se transformou em bode expiatório, e, sobretudo de muitos falhados isaltininhos que nunca foram sequer processados e que nem a presidente da paróquia, ou da secção, ascenderam. E que agora se apressam a denegrir aquele que foi um paradigma de jotas e jotáceos.


Nem o PS, sobretudo o de Oeiras, pode dar lições de moral política. Todo o ambiente das cúpulas autárquicas oeirenses vivia segundo o ritmo do chefe, confundindo o cor de rosa com o laranja. Basta notarmos como foram até agora os candidatos a presidentes municipais por parte do mesmo PS, onde raramente se remeteu uma personalidade capaz de fazer sombra ao reeleito presidente, mesmo sem PSD.


Isaltino é um dos melhores exemplos de caciques pós-revolucionários. Mas ser cacique como ele implica muito trabalho, muito serviço, até público, e outra tanta vocação. Só um apreciador injusto lhe não reconhece essa vocação e esse treino. Não alinharei nos que ontem o consideravam bestial e que hoje o alcunham de besta. Basta citar Montesquieu, assim de cor: todo o homem que dispõe de poder, tende a abusar do poder que alcança.


O que falhou não foi o uso do poder por parte de uma pessoa. Foi um sistema democrático, apenas preocupado em saber quem manda, em termos de aritmética de maiorias, minorias e coligações. Aquela democracia pós-revolucionária que não seguiu a lição de Karl Popper, segundo a qual é mais importante sabermos como se devem controlar os poderes dos que mandam, pela via, não da separação formal de poder, mas dos pesos e contrapesos dentro da balança do poder. Porque, para cada acelerador, deve haver um travão, aquilo que, outrora, Cavaco Silva qualificou como forças do bloqueio.


O poder judicial pôs agora um travão ao excesso de aceleradores isaltinos. Mas os calços da máquina da administração da justiça em nome do povo não conseguirão a eficácia. Ele, condenado a formal perda do mandato, ainda pode recandidatar-se e o trânsito em julgado da sentença pode demorar dois, quatro ou cinco anos. Isto é, pode ter efeitos depois do acto.


Basta que Isaltino repita o que disse Sócrates em pleno rebentar do caso Freeoport e em pleno congresso do PS: o povo é quem mais ordena! Isto é, o eleitorado é mais importante do que o poder judicial. Isaltino já apelou aos oeirenses. O Marquês de Pombal só foi condenado quando largou Oeiras e foi desterrado para Pombal. Em democracia, na pluralista e de Estado de Direito, o povo não pode mais do que o poder judicial. Em Portugal este princípio válido e semivigente também deveria ser eficaz. Não há pior justiça do que aquela que aparece ao povo como impotente.