a Sobre o tempo que passa: Começamos a ser todos coveiros do regime, porque obedece quem não deve e manda quem não pode

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

25.11.09

Começamos a ser todos coveiros do regime, porque obedece quem não deve e manda quem não pode


Disse, há dias, que hoje não ia à procissão da homenagem, segundo aquele novo catecismo que é tão velho quanto as coisas velhas que sempre foram antiquadas. Prefiro respirar neste verbalismo de símbolos que, tendo um motivo existencial de revolta, pretende apenas ascender ao categorial, para que cada um fixe a metáfora num dos muitos lados que nos vão pesando em servidão. Nem tenho que dizer das razões deste permanecente concentracionarismo, feito feira de vaidades. Basta notar que há uma natureza das coisas e, por dentro das coisas, é que as coisas realmente são. Ponto final. Com parágrafos seguintes.


Até podemos peregrinar por outros sítios do mesmo "pagus". Basta notarmos como presidente Cavaco está a recuperar: o assessor de imprensa subiu na escala hierarca das honrarias de Estado, as sondagens já lhe dão recuperação, o sorriso do enigma já venceu o ritual do tabu. Também o processo Casa Pia comemora o quinto aniversário da sua dilatória e legalíssima falta de leitura de um conjunto de estudos editados em meados do século XX pela Ordem dos Advogados, do tempo dos Adelino da Palma Carlos, quando se fazia o cruento retrato do tempo que afinal seria prospectivo... Uma tal de administração da justiça anterior à chegada à pasta de Manuel Rodrigues e que agora é de quem continua sem dizer nada...


E depois há sempre parelhas que se passeiam em música celestial. Um e o outro, como o Dupont e Dupond. Os tais que vieram do mesmo sítio mental e sociológico, mesmo que as arestas do quadrado pareçam fazê-los em não coincidência. Que se cruzaram, em memórias, numa casinha da Rua de D. Pedro V, onde o colega de gabinete de um deles dava repastos espirituosamente vivos aos seus colegas de menos posses, e mais poses, quando já havia imagem, sondagem e sacanagem. Como todo o agora deste pantanal. Uma parelha que é paradigma de muitos mais uns e outros, que nada tiveram a ver com a libertação ocorrida em 25 de Novembro de 1975. Que um estava bem longe, por ter sido dignitário da coisa que felizmente já não há, desfeita em apodrecimento, por durar e durar em provisório. Que outro, mero familiar da mesma coisa, não tinha seguido o recuo de Cunhal e estava na vanguarda do golpe contra a democracia pluralista, simbolizada por Ramalho Eanes e Melo Antunes.


A parelha em causa, sem ser em ficção, pode ter o monopólio da palavra e, em certas secções do aparelho do poder, até o monopólio do poder, só porque uns e os outros fingem que são irmãos-inimigos, quando efectivamente sempre estiveram aliados na intolerância, no fanatismo e na persiganga. Nunca direi seus nomes inteirinhos, até porque não interessa, a não ser no simbólico. Até nem os direi quando voltar a haver vergonha, mesmo que não venha a justiça. Prefiro que os idiotas úteis não percebam a finta em que caíram, só porque puxa por eles aquela pretensão de honrarias, as tais que duram tanto como o bafo de vindicta.


Ainda há verdadeiros exemplos do século do dogma. Que um silenciou assassinatos políticos de adversários e ainda continua a invocar as teorias bafientas da razão de Estado, dos segredos do dito, e do realismo que o pariu, com milhares de mortos nas encruzilhadas da ditadura dos factos. O outro, pensando que o não subscreve, apenas pensa que é a história que faz o homem, em sucessivos revisionismos do pretenso sucesso de vencedores, mesmo que pareçam o que não são, um quarto de hora antes do vazio infinito, do infinito que nunca procuraram. Ambos poderiam ser as duas faces de Jano, neste comemorativismo coveiro do regime. Aquele que continua a dizer que manda quem pode, obedece quem deve. Ele, o senhor ninguém, é que manda mesmo. O súbdito que o quer ser, apenas obedece e agradece, unidimensionalmente.


Entre um jacobino dito de esquerda e um jacobino dito de direita, a revolta dos que são fiéis aos mortos do 25 de Novembro de 1975. Que não são apenas mero dano emergente, mero efeito colateral, para que, depois de esquecidos, se continuem os desmandos dos regicidas de praça públicas, ou dos silenciosos democidas de alcatifa. São todos daquela velha classe hegemónica capitaleira que quer continuar o genocídio social da injustiça. E todos eles somos nós. Cadáveres adiados que não procriamos nem nos vemos ao espelho.