a Sobre o tempo que passa: Uma hora de pedra voltada ao mar. De Teresa Vieira

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

5.2.10

Uma hora de pedra voltada ao mar. De Teresa Vieira


UMA HORA DE PEDRA VOLTADA AO MAR

A completude só se atinge num estado um pouco além da consciência desperta. Contudo, muitos são os que insistem que a tristeza crónica e o desencanto permanente, constituem em si, a tal completude de maturidade que devem demonstrar com afinco e convicção.

Os tempos, para umas certas bandas de um país, só estão perfeitos quando não há possibilidade de transfigurar em pior a realidade dos dias de cada um. Não me refiro aos dias actuais de modo específico, refiro-me a um género de postura que devem tornar insuportáveis os seres divididos entre o mal e o pior que lhes acontece.

Durante esta doença sem cura aparente, a vida vai ficando aquém, não precisamente por ser efémera, mas por não aceitar a intensidade da desgraça que supera os limites do tempo que se vive e, à cautela, ainda se vai deixando esta desgraça como legado, não vá o diabo tecê-las e um dia o descendente acreditar na diferença de um sorriso fresco e prenhe da tal completude a que me referi.

Escrevi estas palavras a pensar na criança que nasceu debaixo dos escombros do terramoto no Haiti e na comoção que senti ao ver na fotografia os olhos da mãe repletos de uma imensidão inquantificável de tanta felicidade e que afinal de jeito tão terrivelmente anónimo, no escuro cerrado da tragédia foi mais uma heroína das heroínas.

Esta mãe tinha também nos olhos uma capa de lágrimas não resignadas. Ela sabe que a partir de agora só a força da não resignação sustém a vida da sua filha e, numa explosão de esperança, agarra-a profundamente junto ao peito como quem sabe que detém uma essência que rompe a realidade explodindo na tal completude a que me refiro no início desta nota.

Algo de profundamente novo aconteceu e esta mãe sabe-o.

A pulsão de vida por oposição à pulsão de morte revela-nos que o paraíso que não nos prometem pode ser aqui e que a consciência destes acontecimentos pode efectivamente mudar tudo, e de uma forma irreversível.

Agora mesmo, no momento em que escrevo, creio que muitos acontecimentos deste tipo estão a ter lugar no mundo e, sem pretensões totais, talvez sejam a única força exemplar do mais difícil sobre o quotidiano cansado de tantas tristezas compulsivas.

Há sempre um ser que me prova que dentro dele existe luz suficiente ao lugar onde se tocam os sonhos e a vida acorda.

Há sempre um ser com uma flor no sorriso, arte que conquistou para serenar os desesperos alheios.

Há sempre um elogio a fazer quando alguém segura a vida nas mãos e não a concebe como parente pobre na era da resignação.

E existem muitas outras coisas menos evidentes do que estas que refiro e prontas a dar sumo. Assim lhes recusem as realidades mutiladas. Assim não tenham de ir longe procurar o que aqui mesmo as reclama.

Sei que a arte está cheia de nostalgia. Às vezes é a própria arte que a transfigura e talvez a partir daí nasça a obra, aquela que deu coragem à dor do parto daquela mãe soterrada ao ponto de não desejar ser esquecida. Ao ponto de ter tido uma hora de pedra voltada ao mar.

Teresa Ribeiro B. Vieira

29.01.10