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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

4.2.11

De novo, a guerra colonial, já com muitas pátrias daquela mátria que pode ser


Os acasos da história não me fizeram combatente, mas desejo que se cumpra a honra com adequada inteligência, para que os cobardes e os traidores nunca sejam os vencedores nas brumas da memória. Os mortos de todas estas guerras, pelos muitos lados de tais combates, bem merecem que as respectivas mortes não tenham sido em vão. 

E os heróis que ainda resistem, de um lado e de outro, exigem a adequada paz dos bravos. Sem deserção dos homens bons, dos homens livres e dos homens de boa vontade. Ai das pátrias que não respeitam os que morreram pelas suas próprias pátrias.

Os massacres e as chacinas de ambos os lados não são para esquecer, mas para guardar por dentro.

As descolonizações da imperial Europa que Deus tem foram, quase todas levadas a cabo por governos ditos de direita. Menos a nossa, feita em governo provisório e sem os prometidos referendos. Com efeito, mesmo em França, as esquerdas que não obedeciam aos patrões da guerra fria, ainda tinham, nos anos quarenta e cinquenta, obediência ao impulso do patriotismo imperial.

O mesmo que marcou a nossa Primeira República e que o salazarismo traiu com a gestão de merceeiro do Acto Colonial, quando se quebrou a tradição da monarquia constitucional e da Primeira República, desde os planos monárquicos de Paiva Couceiro, aos sonhos republicanos das missões laica, implantados por Norton de Matos ou Álvaro de Castro.

Mesmo a oposição de esquerda ao salazarismo só muito no crepúsculo da Ditadura é que abandonou essa perspectiva da nação una, ainda bem agitada pelo capitão Henrique Galvão, antes e depois da aventura do Santa Liberdade, mesmo em plena ONU. Mas também foi este inspector colonial que, no próprio Palácio de São Bento, como deputado salazarista, teve a ousadia de, num relatório, denunciar os resquícios de escravatura que se mantinham no chamado trabalho forçado em Angola.

Na época da denúncia, as colónias ainda não tinham voltado ao velho nome de províncias ultramarinas, como vai acontecer com o primeiro ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues, um ilustre maçon que já veio tarde demais para o sonho imperial da integração, quando fracas eram nossas forças e já não podíamos livrar-nos da pressão internacional.

Mesmo o que a propaganda salazarista balbuciava em tempo de guerra, da nação una e indivisível, segundo velho desenho de Galvão (reproduzido em cima), apenas visava adiar aquilo que foi o principal erro de Salazar: considerar inevitável uma terceira guerra mundial, onde o Ocidente pagaria a Lisboa esse esforço de resistência.

Pena que tenha tardado essa corrida contra o tempo, abolindo o indigenato e praticando o pluri-racial e o pluri-continental, mas, infelizmente, sem democracia, que deixasse de conjugar o verbo ter, da colonização, ou o verbo estar, da assimilação, e passasse a viver o verbo ser, conforme consta do manifesto da Comissão Eleitoral Monárquica de 1969, em oposição ao regime. Os portugueses e os povos que estavam sob formal soberania portuguesa acabaram como simples peças de um xadrez de guerras por procuração, com que se disfarçou a guerra fria.

Os resultados foram dramaticamente consequentes, com o revigorar dos conflitos armados em Angola e Moçambique, já depois da saída de cena da república dos portugueses.



É evidente que não posso ter saudades de futuro de um modelo que produziu colonialismo, escravatura e racismo, o lado sombrio de um outro luminoso sonho que o tempo não quer cumprir. E tenho de agradecer a todos esses povos o facto de quererem ser independentes.

A melhor forma de continuarmos a procurar Portugal fora de Portugal passa pelo universal dos futuros laços que se tecerem entre essas diversas comunidades de várias pátrias da mesma pátria de uma língua comum que pode ser mátria. Uma super-nação de várias nações, a caminho de uma super-nação futura, mas que tenha o Brasil como líder.

Aquilo a que chamam CPLP é imperfeito esboço de um mais vasto sonho que, dia a dia, as plurais identidades e culturas podem referendar, pela comunidade das coisas que se amam, com saudades de futuro.