a Sobre o tempo que passa: Sermão de Pedro à peixeirada...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

11.10.04

Sermão de Pedro à peixeirada...


Ao fim de quatro anos e meio, os portugueses viveram, finalmente, um domingo desmarcelizado. Valeu-nos, naturalmente, a longa entrevista do Presidente Sampaio à SIC, nesse sucedâneo de homilia que talvez não tenha a mesma audiência do antigo Presidente do PSD.

Valer-nos-á, amanhã, o nosso Primeiro, Pedro de seu nome, que vai demonstrar como, afinal, ele não atingiu o "princípio de Peter", dado que o próximo Orçamento de Estado será a varinha de condão que nos libertará desta idade das trevas em que o guterrismo e o barrosismo nos lançaram.

Amanhã, as crónicas registarão para sempre:

Pedro estava homiliando aos portugueses no Palácio de São Bento, quando por cá dominavam os hereges que resolveram não ouvi-lo em hipótese alguma. Subiu ao púlpito e quase todos se rasparam ou mudaram de canal. Não esmoreceu e pregou aos que tinham ficado. Inflamado pela inspiração social-democrata e democrata-cristã, falou com tal energia que os hereges resistentes reconheceram seus erros e resolveram mudar de voto. Mas o primeiro-ministro não estava contente com o resultado parcial . Retirou-se para orar em solidão, pedindo ao Altíssimo que todo o país se convertesse.

Saindo do retiro, de São Julião da Barra, o forte que Portas lhe emprestou, foi directo à praia da Figueira da Foz e, em altos brados, clamou aos peixes que o ouvissem e celebrassem com louvores ao seu supremo governo, já que os homens ingratos, de Marques Mendes a Marcelo, de Sócrates a Loução, não queriam fazê-lo. Diante daquela voz brilhantina, apareceram logo os incontáveis habitantes das águas, e se distribuíram ordenadamente, cada qual com os de sua espécie e tamanho. Os peixes ergueram suas cabeças da água e ficaram longo tempo imóveis, a ouví-lo, com o aplauso de Paulo Sacadura e Helena Lopes da Costa.

Ficai sabendo, portugueses, que graças a este competentíssimo governo, a carga fiscal vai baixar, serão aumentados os vencimentos dos funcionários públicos e as pensões para reformados e aposentados. Mais: porque a economia está na retoma até os patrões pagarão mais elevados salários. Em verdade vos digo: acabaram os sacríficios, teremos mais riqueza e mais justiça. O reino dos céus se anuncia: quem é mais rico, pagará menos. Quem é mais pobre e tem mais dificuldades será ajudado. Nós, Pedro, nós, Paulo, nós, Cinha, nós, Avelino, nós vos prometemos que o petróleo vai baixar. Que o desemprego vai acabar. Cristo descerá à terra e Marcelo continuará calado. O Prestige não atingirá o porto da Figueira da Foz e Paulo Portas até já teve um encontro imediato com Nossa Senhora da Barra.

Apenas apetece dizer que, depois de tanta banha da cobra, continuam a não deixar espaço para a necessária heterodoxia da criatividade, a fim de que possa surgir o necessário sindicato dos homens livres que possa ser semente para que as gerações vindouras se libertem deste peso morto da revolução perdida, que conduziu alguns para o chamado fanatismo da abstracção de que falava Vaclav Havel, nesse "vira o disco e toca o mesmo" em que vamos decaindo em desencanto.

Qualquer semelhança entre o texto emitido e as presentes circunstâncias não é apenas coincidência. A história constitui, na verdade, o género literário mais próximo da ficção.