a Sobre o tempo que passa: Viva o 5 de Outubro!

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

6.10.04

Viva o 5 de Outubro!



Sampaio discursa no 5 do feriado depois da ponte. Muito vivório sem foguetório. Milhares de criancinhas das escolas dão palmitas com os paizinhos, o lanche oferecido pelo Orçamento de Eetado, e os escuteiros batendo a pala, como sucedâneos da velha bufa. Sobretudo os do Corpo Nacional de Escutas, coisa que o Cerejeira não quis na Mocidade Portuguesa, mas que agora alinham atrás dos devotos de Afonso Costa, talvez por terem a suprema benção do numerário João Bosco, dado que os democratas-cristãos de bons costumes e limpeza de sangue nos governam e usam das corvetas para a defesa dos bons princípios, contra esses calvinistas donde vem o flamengo e donde era o Espinosa.

O discurso do presidente leva água no bico, talvez por ter a seu lado um Santana, eleito para a Câmara em coligação com o Partido Popular Monárquico, o que talvez explique este vazio de povo, na comemoração do regime. Esta velha senhora já de noventa e quatro anos, dita república, com quarenta e oito dos ditos em não-democracia, vinda do 28 de Maio, trinta de abrilismo e dezasseis de afonsismo e bonzos, o que dá apenas quarenta e seis em nome da democracia. Por outras palavras, por enquanto, a república é bem menos democrática do que a monarquia azul e branca. Mais de metade do respectivo tempo não respeita a representatividade consagrada pela constituição histórica e pelas constituições escritas de 1820, 1826 e 1838.

É perigoso transformar o 5 de Outubro em festa da democracia e muito mais da democracia pluralista, representativa e de sociedade aberta como é a nossa desde 25 de Novembro de 1975.

Porque o que se passou entre 1910 e 1926 foi uma jacobinada que reduziu o sufrágio, eliminou o pluralismo partidário (tivemos um partido único e as suas dissidências), transformou um errado paradigma pretensamente científico em ideologia oficial (positivismo), perseguiu estupidamente a Igreja, recusou a eleição do Presidente da República por sufrágio directo e universal, abusou do clientelismo e do viracasaquismo, etc.

Isto é, as glórias justas do presente regime nada devem à dita Primeira República. O presidente eleito por sufrágio directo e universal é uma herança do sidonismo e da Ditadura Nacional. O alargamento do sufrágio tem mais a ver com a monarquia liberal, tal como o pluripartidarismo.

Até os descendentes do partido de Afonso Costa, os soaristas do PS, decidiram rejeitar o legado e co-criar aquilo que de melhor temos.

Comemorar o 5 de Outubro tem de ser dizer a verdade. E recordar que a Ditadura e o Estado Novo também comemoravam o dito dia, embora esvaziando-o animicamente.

Porque a I República implantou-se apenas obedecendo à mera legitimidade da violência revolucionária e sempre temeu ser plebiscitada.

Agora, o que temos é um regime híbrido, constituído por usucapião ou prescrição aquisitiva, até porque já foram ultrapassados todos os prazos jurídicos sobre a posse incontestada da usurpação violenta e da própria má fé. Isto é, neste virar do milénio, nestas vésperas do centenário da república, todos somos republicanos por usucapião. Isto é, não somos nada.

O absurdo corte praticado pelos actuais historiadores oficiais do regime, de Fernando Rosas a António da Costa Pinto, face à tradição azul e branca dos regeneradores de 1820, 1834 ou 1851, não passa de uma mentira propagandística que não dignifica sequer a beleza mobilizadora da boa ideia de república, como a sonharam um Pascoaes, um Sampaio Bruno ou um Jaime Cortesão.

Mas esses nunca renegaram os factores democráticos da formação de Portugal e sempre se consideraram herdeiros da tradição demo-liberal dos Fernandes Tomás, dos Passos Manuel, dos Anselmo, Herculano, Garrett ou José Estevão.

E eu, como monárquico e republicano, que continua a desejar um trono cercado por instituições republicanas, em nome da lusitana antiga liberdade, fiel a esse eterno projecto por cumprir e que devemos semear e cultivar, apenas reclamo que quero comemorar a democracia e a república sem o ódio dos buissidentes...