As doçuras do autoritarismo passado
Ontem, em conversa com um velho professor, fiquei a conhecer como há cerca de meio século, o regime autoritário português tratava os professores, incluindo os catedráticos, que ousavam verberar o regime estabelecido ou os poderes dominantes nas respectivas escolas, onde havia largas coincidências nas filiações partidárias e nos apoios governamentalistas. Contou-me esse velho professor como um colega dele, depois de pedir sabática, foi sujeito a requintes de legal malvadez como a seguir contarei. Que longe vão os tempo dos Espinosas que, obrigados a sair da terra-mãe, viram um dos filhos, já no exílio, ser saneado da sinagoga, porque era judeu heterodoxo, censurado pelos cristãos e devidamente silenciado. Ai dos que ficam de mal com el-rei por amor dos homens e de mal com os homens por amor de el-rei. Serão eternos mal-amados que todos deverão apedrejar porque quebraram sem torcer.
Um certo dia, no tempo da outra senhora, os estudantes decidiram organizar uns colóquios, subsidiados pela direcção da escola, e, sem qualquer maldade, incluíram o dito professor como moderador de um painel. Vai daí, emitiram convites para pessoas estranhas à escola com o nome do dito. Eis senão quando, um dos altos directores da instituição, vendo a coisa, voltou-se para os estudantes e disse. "Esse não pode ir, está de sabática, metam-me a mim". Os pobres estudantes, habituados a obedecer, assim procederam, não reparando que o tal director estava a exercer uma vingançazinha, talvez de mau gosto. E o colóquio lá decorreu com maior pluralismo e garantia de domesticado laudatório.
Felizmente que já vivemos em regime de pluralismo, sem esse modelo de execrável autoritarismo, pelo que, no meu caso, professor catedrático em regime de sabática, me dou por feliz, dado que já não há desses maus exemplos. Ainda ontem, por exemplo, apesar de estar nessa situação sabática, fui amavelmente convidado pelos estudantes, por indicação de um estimado colega, director da instituição, para poder proferir uma conferência na minha escola. Tive, contudo, de recusar, dado que me lembrei desses tempos de maldosa persiganga e até aconteceu que a minha visão ficou subitamente toldada e pensei que se estava a passar comigo o que aconteceu a esse velho professor nos tempos, felizmente ultrapassados, do salazarismo.
Contaram-me também que nesses tempos, quando tal velho professor pediu sabática, outro distinto director logo aproveitou a circunstância para imediatamente lhe retirar todas as cadeiras, colocando em seu lugar outro solícito colega que nem sequer pertencia ao grupo, mostrando assim a todo o mundo que quem o contestasse seria, deste modo, punido. E não satisfeitos com a coisa, afastaram-no também de todos os júris, sem sequer terem a elegância de lhe comunicar previamente qualquer uma dessas intenções. Porque professor catedrático imprevisível e não feudalizável tem o grave defeito de não usar "vase de nuit".
Acrecentam-me que tal processo visava, pelo medo, dar-lhe a adequada estrela da punição, lançando-o no pelourinho, para que outros não lhe seguissem o exemplo. E assim se estabeleceria uma efectiva e conveniente "capitis deminutio", dado que, ficando com a cidadania académica comprimida, o mesmo não poderia candidatar-se a qualquer lugar de representação, ou directivo.
Ouvindo estas histórias, dei comigo a louvar as vantagens do Estado de Direito, a saudar a chegada do 25 de Abril e a dizer quão diferente é o ambiente da minha querida escola, onde se respeita a palavra dada, se cultivam os laços de companheirismo e ninguém é perseguido pela vindicta, salvo aquele episódio triste em que, também há cinquenta e cinco anos, foi afastado um doutor só porque era membro de um partido diabolizado pelo sistema. Felizmente que nenhum dos saneadores do dito é actualmente presidente do conselho directivo, vice-presidente do conselho directivo, vice-presidente do conselho pedagógico ou presidente do conselho científico, porque se ainda existisse o orientador da dissertações de mestrado e doutoramento do falecido perseguido, o mesmo ainda poderia ser vítima de retaliação, em ricochete, dado que não acertou no referido "vase de nuit".
A minha escola é, felizmente, uma instituição, onde há uma firme ideia de obra, consolidadas relações de comunhão entre os respectivos membros e respeito meticuloso pelas regras processuais. Nela não vigora (hossana!) o regime de governo dos espertos, já há muito que foi abolido o estatuto do indigenato, tal como é fomentado o pluralismo de paradigmas científicos e doutrinários. Que bom viver num regime como aquele que nos garante a democracia pluralista, onde ninguém é saneado, afastado ou perseguido só porque vai verberando, de acordo com a sua consciência, os poderes estabelecidos. E até nos podemos permitir exercitar a nossa soberania académica, exprimindo num júri opiniões livres, onde, respeitando o mérito, não temos que louvar aqueles que exercem cargos executivos, dos quais nos podem vir subsídios para viagens, subsídios para centros de estudos, subsídios para projectos de investigação ou facilidades na contratação de pessoal assistente ou monitor. Como eu sou feliz por viver num tempo novo, onde os órgãos de gestão da escola são eleitos pelas massas académicas e não pela circunstância de dois, três ou quatro professores terem como assistentes, todos convidados, cerca de metade do corpo docente, ou melhor do colégio eleitoral... Felizmente, os tempos da aurora libertadora já chegaram, quando os cravos vermelhos permitiram meter as espinguardas nos quartéis e dar a vez às urnas abertas depois de eleições justas e livres.
Qualquer semelhança entre o texto emitido e as actuais circunstâncias não é apenas coincidência. A história constitui, na verdade, o género literário mais próximo da ficção. E quando se repete tanto redunda em tragédia como na presente comédia.
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