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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.11.04

Coimbra, maçons, memória



Não, nunca conheci Fernando Valle, o velho maçon da minha pequena pátria, lá na Beira Litoral, à sombra de Aeminum. Logo, não posso dedicar-lhe as palavras sentidas que recebeu dos companheiros, dos irmãos e dos correligionários. Nunca dele fui companheiro, irmão ou correligionário. Só compatriota. Da Beira e de Portugal. Conheço, contudo, algumas figuras dessa geração e irmandade, desses velhos republicanos, históricos e patriotas, que, com ele, fizeram corrente. Compreendi-os, sobretudo, nos velhos tempos do PREC, e, com eles, convivi e cumpliciei diariamente nos tempos duros do dito processo revolucionário. Posso e devo testemunhar a coerência que tiveram no momento genético da liberdade. Logo, saúdo todos quantos invocam exemplos morais de vida autêntica, porque só assim poderemos levar a cabo a urgente moralização da política.




Não falo de Valle, mas recordo Contente Ribeiro, o paradigma do advogado maçon que me ensinou a deontologia de uma profissão que estagiei, mas que não cheguei a exercer. E recordo as muitas conversas onde me ensinou democracia, tolerância e coragem. E assinalo o seu amigo de sempre e colega de escritório, por acaso um velho monárquico. Recordo, sobretudo, os tempos difíceis daquela Coimbra, terra de minha nascença, criação e formação, eu que vim ao mundo junto à Sé Velha, que fiz escola em Subripas e que aprendi o mundo e a política, subindo e descendo o Quebra-Costas, correndo a Calçada, circulando em todos os becos da minha Baixa, da Praça Velha à Rua da Sofia. Recordo a pátria, a ferida ainda não sarada da persiganga, do saneamento, do silêncio de certos senhores doutores, hoje pretensos professores da liberdade, mas nessa altura esbirros ao serviço de um totalitarismo que parecia vencedor. Recordo a pátria que amo e donde me exilaram, educado na palavra por meu primo e mestre Campos de Figueiredo, de meu padrinho Luís Goes, de meu querido e falecido pai que todos os dias me deu cidade e sinais dos outros patrícios. E assinalo que foi através de Contente Ribeiro que consegui que a Liga Portuguesa dos Direitos do Homem se lembrasse dos direitistas presos nesses tempos de silêncio. E José Miguel Júdice era um deles.




Pátria sempre foi terra de mortos queridos, de memória viva, e, como sou conservador e regionalista, todos os dias me relembro, passeando num passado presente para poder semear saudades de futuro. O exemplo de Fernando Valle me dá memória de outros que já se foram, mas que não morrem. Nem têm nome em livro, em rua, ou em jornal. Por exemplo, o meu querido dr. Ribeiro, aquele que sempre foi meu paradigma de político, dado que, de vez em quando, era preso e, ao voltar, lamentava-se de, na cadeia, o não deixarem ler. Valia-lhe, sempre, a cunha do Bissaya que tinha sido colega do pai dele. Apenas me lembro que ele não gostava nada de padres, apesar de ser amigo deles, e que andava sempre a dizer mal do Salazar. Mas a minha avó, que era beata, só dele é que gostava, desse meu querido doutor que dava remédios a toda a gente e que, à noite, colava cartazes do Arlindo Vicente. Já depois de 1974, cruzei-me com ele no tribunal, preso mais uma vez, por ser do MRPP. Contudo, a vila de Condeixa, ainda não lhe deu o justo nome de rua.



Outro doutor Valle era meu primo Quim, que morreu antes mesmo de eu nascer, talvez com uma doença de pulmões. Nessa fidelidade me formei e ainda guardo o retrato que sempre esteve na cómoda da tal minha querida avó que me fez quem sou. Era outro dos que andava sempre a sentir na carne a estadualidade repressiva. Na fotografia, estava vestido de estudante com uns óculos redondos e toda a minha família dizia que era um santo. Era, naturalmente, maçon ou comunista. Esqueceu, mas não em mim. Como ainda me identificam esses outros rurais, meus avoengos, que andaram na Revolta do Grelo e os filhos dos mesmos, dos anos trinta, que estiveram presos e foram condenados por Tribunais Militares Especiais, antes mesmo de haver PIDE. Também não têm nome de rua, nem placa, nem livro de homenagem. Não eram comunistas, nem maçons, nem sequer antifascistas. Eram homens livres e deixaram-me esta rebeldia. A de nem sequer prestar menagem aos senhores doutores que vão refazendo a história da minha terra e que, através de muitos revisionismos, a continuam a usurpar. Reclamo minha cidadania coimbrinha, minhas rurais raízes de patuleia, espero que não proíbam, mais uma vez, que meus ossos possam regressar à terra-mãe, dos meus amores. Não me decepem de pátria, falsos professores da liberdade. E para os arquivistas, que são justos, proponho que leiam, ao menos, os arquivos do povo.