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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.11.04

Tem razão quem vence.



Os cemitérios estão cheios de pessoas insubstituíveis e a vida sofrida está cheia de gente sem pés. Uns estão sempre de pé atrás e outros tantos sempre em bicos de pés. Que o crime compensa, dado que uma gestão adequada da piratria que permita atacar à vista da costa leva a que se consiga dominar a presa com toda a facilidade. Vencem sempre os que, sendo fiéis ao maquaivelismo salazarista, confundem a lealdade com temor reverencial e o sentido de serviço com o louvaminheirismo. Especialmente os que sofrem do serôdio defeito de emprenhar de ouvida.

Normalmente não conseguem contornar ódios vesgos e actuam quase sempre ao serviço da respectiva literatura de justificação, dado que não conseguem pensar no longo prazo das instituições. São implacáveis nos esquecimentos, intolerantes para os que lhes dizem não e cultivadores exímios de um ego de vaidade e presunção. Têm, pois, a estrutura doentia dos déspotas iluminados, onde o despotismo está mais na iluminação do que no déspota. Por isso, mesmo quando se dizem institucionalistas, matam todas as instituições que não lhes sirvam de capacho.

São o exacto contrário das muitas ideias que proclamam e cantarolam. Têm a falta de autenticidade de todos quantos disfarçam os respectivos caprichos, em nome de uma pretensa moral de responsabilidade. No fundo, não acreditam em nada porque são incapazes de uma simples emoção.

Entre um autocrata de meia tijela e o despotismo dos grandes senhores há a diferença que separa a canalha do requinte da malvadez. E tudo se agrava quando a malvadez se torna em acto reflexo, condicionado pelos modelos da vivência de salão.

Muitos transformam-se em tios de taras genéticas desses rapazinhos gerados em colégios de pretensa gente fina que apenas sobrevivem à custa das cunhas e dos carimbados nomes de famílias outrora ilustres.

Elegantes parasitas que entendem por tolerância a compra de qualquer "pintcha" que lhes morda nas canelas. Não reparam que a vingança fria lhes há-de ser servida pela própria rectaguarda. E até há daqueles inconvenientes que ainda conservam a bela virtude da insolência e sabem dizer não. Daqueles que ousam cumprir as ideias que os retóricos proclamam, só porque gostam de levar os discursos à prática.



Há os que apenas são comprados por aquilo que não serve para comprar. Os que não se movem para apanharem os restos dos pratos de lentilhas com que os outros se vão locupletando. Os que pretendem continuar fiéis aos princípios que à vida dão sentido. Os que pretendem resistir e seguir sempre as palavras de ordem da verdade.

Esses não usam daqueles discursos herméticos que tanto dão para a esquerda como para a direita, nesse cúmulo do contorcionismo, a que certas gerações de gente sem espinha pensam que é coerência. Só porque têm como discípulos a manhosice dos despotazinhas de salão, esses canalhas de colarinhos brancos que se salpicam de perfume, como disfarce.



Eles odeiam com o ódio fino dos hipócritas, mexericando com seus dedos de serpente. Eles os usurpadores de boas maneiras.

Nem sequer os odeio. Apenas lamento e sinto asco por todos aqueles que nos querem roubar o esforço feito com amor e companheirismo, através de laços forjados na amizade, do dia a dia passado com autenticidade e calor humano. Mas, perante os destruidores das instituições, sinto o ruborescente calor da revolta.


Deixem passar a banda dos sim-senhores, deixem tilintar as medalhas, os cheios de penas nos bonés, as plumas de enchumaço, os grandílocos ventres cheios de ar, deixem-nos passar, dedos papudos, fogos fátuos, dentes de morte, amarelados. Que batam as latas, que batam as palmas, que rufem os tambores da procissão. Envernizem as baionetas e desfilem pelo curral das vacas que não há, para que os cadáveres adiados continuem a procriar elogios mútuos. Batam as latas, batam as palmas, agitem vossas indumentárias afiveladas, ilustres senhores gerontes, esperanças de futuros ridentes, homens de finas virtudes, continuai a dissimular. Tem razão quem vence. Tem razão quem vence. Tem razão quem vence.


Vivam o pais de todas as múmias, de todos os tchernenkos enfileirados, que ainda continuam a mexer, dos arranjadores de muitas moedas de cobre que vão entesourando entre arrotos de licores e sabores de queijos exóticos. Ei-los, os que jogam com o dinheiro dos outros, os que se desunham em golpadas, dando beijos ao inimigo, abraços aos concorrentes, esperançando os que emergem e mandando à distância nos que largaram. Ei-los os gestores de muitas teias de aranha, onde centenas de jaçunços vão gozando as últimas lentilhas. Todos prometem aquilo que não podem cumprir. E a procissão nem sequer sai do adro