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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

6.12.04

A confuciana aparição na Palma de Cima



Quando Hanfeizi falou sobre o castigo e a recompensa, ele não se preocupou em tentar entender se o homem era bom ou mal; se estava ligado ou desligado da natureza; se havia necessidade de uma discussão pública ou privada do poder; se os seres deveriam ou não ser instruídos. Para ele, todos estes aspectos são de âmbito individual, e não diziam respeito à premência de organizar o poder e a colectividade de uma forma única e coesa


Vindo de outro planeta, assistimos hoje, quase em directo, à aparição de um apóstolo de São Confúcio nas místicas paragens da Palma de Cima. O representante do velho senhor do Império Celeste clamou aos crentes: "uma situação de crise política não é seguramente o melhor momento para discutir a Constituição celestial". Frisando sempre falar em termos gerais, Hanfeizi considerou necessário "reflectir bem" e "ter algum cuidado" porque os referendos "servem muitas vezes para discutir outras coisas" que não a questão central da consulta.

Não querendo comentar as declarações de Ângelo Correia sobre a "tralha barrosista", disse que isso de Sampaio, Lopes e Portas "é uma questão terrena sobre a qual não me posso pronunciar", acrescentando que "é comum haver crises políticas nas democracias europeias". Mas que "a vantagem das democracias é conseguirem sempre encontrar as melhores soluções para as crises políticas". Admitiu, no entanto, ter ficado "surpreendido" com a decisão do Presidente de dissolver a Assembleia da República e disse seguir "com especial preocupação" a evolução da crise, por se tratar do país onde apareceu.



A administração, tanto da punição, quanto da recompensa, resumem os pressupostos de que a coletividade não possui uma identidade definida, e por isso mesmo, não pode ser julgada nem guiada por princípios diferentes. Uma única lei é necessária, o que torna todos as pessoas iguais. Não haveria espaço, numa sociedade deste gênero, para o interesse próprio, sob pena de punições severas. É, portanto, a violência, um mal necessário? É, a força, uma realidade indissociável da prática do poder? Será que os melhores governos têm que se basear numa administração forte, austera, porém radical? Até porque isso nos faz questionar, também, sobre a efetividade dessas medidas. Como disse uma vez Montesquieu, os melhores códigos legais são os que têm menos leis, porque demonstram uma sociedade evoluída, que não necessita de tantas regras para viver. Se Hanfeizi promulgou tantas diretrizes, é bem provável que a quantidade de crimes fosse enorme. Além disso, o povo, que deveria ser o maior beneficiário dessa “igualdade”, ateou fogo à tumba de Qin Shi Huang Di, revoltado com os anos de exploração. Logo, mesmo as propostas legistas nos fazem ver que a manipulação do poder pela força gera descontentamento e atrito, já que ela não impede a manifestação dos interesses individuais no sistema social. Em muitos casos, a igualdade jurídica, se não bem vistoriada, torna-se um embuste à realidade das divisões sociais. E, assim sendo, mesmo todas as benesses advindas de um sistema político fechado podem perder-se no mar da violência (com a devida vénia, de André Bueno).