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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

5.12.04

Os monges que despiram os hábitos




Estando um Monge em Matinas com os outros Religiosos do seu Mosteiro, quando chegaram aquilo do Salmo, onde se diz que mil anos à vista de Deus são como o dia de ontem, que já passou, admirou-se grandemente, e começou a imaginar como aquilo podia ser. Acabadas as matinas, ficou em Oração, como tinha de costume: e pediu afetuosamente a Nosso Senhor se servisse de lhe dar inteligência daquele verso. Apareceu-lhe ali, no coro, um passarinho, que cantando suavíssimamente, andava diante dele dando voltas de uma para a outra parte, e deste modo o foi levando pouco a pouco até um bosque que estava junto do Mosteiro, e ali fez seu assento sobre uma árvore; e o servo de Deus se pôs debaixo dela a ouvir.


Então, o secretário-geral do convento, vindo de mais uma noite sem dormir, por causa do conselho dos abades, logo declarou que está "mais na natureza do convento" ir para as comezainas sozinho, embora os donos do capítulo não excluam a hipótese de constituir uma plataforma conventual com outras abadias, igrejas seculares, beatas, betos, peregrinos, tiazinhas, romeiros, e donos da massa. "O que está mais na natureza do convento é comer tudo sozinho", disse. Porque "com este abade ir sozinho é mais fácil. É como ele se sente especialmente bem", sublinhou o dito. E "por unanimidade, o Conselho deu ontem um mandato à direcção do convento para decidir se os abades irão sozinhos ou se constróem uma plataforma para a jantarada". Contudo, acrescentou, apesar de terem estado até agora a trabalhar na hipótese de comerem sozinhos, "por uma questão de humildade, moralidade política e coerência", admitem "a constituição de uma plataforma que pode ou não ter outros conventos ou outros movimentos místicos". Desde que o cozinheiro se mantenha.

Dali a um breve intervalo (conforme o Monge julgava) tomou o voo e desapareceu com grande mágoa do servo de Deus, o qual dizia mui sentido: Ó passarinho da minha alma, para onde te fostes tão depressa? Esperou. Como viu que não tornava, recolheu-se para o Mosteiro, parecendo-lhe que aquela mesma madrugada depois de Matinas tinha saído ele. Chegando ao Convento, achou tapada a porta, que de antes costumava servir, e aberta outra de novo em outra parte. Perguntou-lhe o Porteiro quem era, e a quem buscava. Respondeu-lhe: Eu sou o sacristão, que poucas horas há que saí de casa, e agora torno, e tudo acho mudado.

Entretanto um frade coadjutor da abadia vizinha declarou ter sérias dúvidas quanto à plataforma conventual lançada pelo convento maior. Para o ilustre místico, são necessários esclarecimentos «convincentes» por parte dos parceiros. O dito considerou que a respectiva abadia deve avaliar bem a proposta do convento vizinho antes de responder à ideia de uma coligação para as conventuais antecipadas, aprovada por unanimidade no conselho. Na opinião do histórico das charneiras, chernes e derivados, todos os aspectos relativos plataforma aprovada são muiti «nublados», sendo por isso necessário «esclarecimentos convincentes». Isto porque a abadia está «bem» com a estratégia traçada pelo frade dirigente, que terá agradado às bases dos comensais. Desde que o cozinhado continue a zer cozido pelo mesmo cozinheiro.




Perguntado também pelos nomes do Abade e do Prior, e Procurador, ele lhos nomeou, admirando-se muito de que não o não deixasse entrar no Convento, e de que mostrava não se lembrar daqueles nomes. Disse-lhe que o levasse ao Abade: e posto em sua presença, não se conheceram um ao outro; nem o Monge sabia que dissesse, ou fizesse, mais que estar confuso e maravilhado de tão grande novidade. O Abade então, iluminado por Deus, mandou vir os Anais e histórias da Ordem: onde, buscando, e achando os nomes que o Monge apontava, se veio a averiguar com toda a clareza que eram passados mais de trezentos anos desde que o Monge saíra do Mosteiro até que tornara para ele. Então, este contou o que lhe havia sucedido, e os Religiosos o aceitaram como a Irmão seu do mesmo hábito. E ele, considerado na grandeza dos bens eternos, e louvando a Deus por tão grande maravilha, pediu os Sacramentos, e brevemente passou desta vida com grande paz no Senhor.


No final da reunião conventual, o chefe da comezaina disse que "não há soluções perfeitas, não há dogmas sobre esta matéria. Temos de tomar a melhor opção a pensar em como comer melhor". Desde que não haja moralidade e só comam os mesmos.

Este é o exemplo. Vede agora, que se a música de um passarinho pôde entreter aquele Monge trezentos anos com tanto gosto seu, que lhe pareceram poucas horas, e ainda desejasse que durasse mais: como não bastará a vista de Deus, que é um bem onde se encerram juntos infinitos bens, para suspender a nossa alma sem fastio, nem cansaço, por toda eternidade? Antes, com satisfação, e gozo tão cabal, como se naquele instante começasse a ver a Deus (de Padre Manuel Bernardes, com a devida genuflexão).