Em defesa de D. João VI
O meu querido companheiro de ideias Carlos Abreu Amorim decidiu dizer que entrei em polémica com ele, só porque protestei contra a circunstância de poder comparar-se Sampaio com D. João VI. Mas foi tudo uma brincalhona provocação. E não é por manias monarquistas que assumi a defesa da memória desse infortunado rei (1767-1826), que governou efectivamente Portugal de 1792 a 1826, primeiro como príncipe regente e, depois, como rei, desde 1816. Regressado a Lisboa em 1821, sofreu as desventuras da independência do Brasil (1822), da Vilafrancada (1823) e da Abrilada (1824), mas aceitando na instauração de uma monarquia dual, insistiu nos direitos de D. Pedro IV como seu sucessor.
Com efeito, o regime de governo de D. João VI, entre 1823 e a data da respectiva morte, sofreu as consequências da revogação da ordem vintista e as pressões da balança da Europa. Depois de dissolvidas as Cortes eleitas em 1822, em 3 de Junho de 1823, na sequência da Vilafrancada, assumiu-se, como forma de poder, a constituição histórica, embora o rei a quisesse transformar numa carta constitucional. Contudo, logo revogou toda a legislação do revolucionarismo vintista, bem como o consequente aparelho institucional, ficando apenas de pé o Banco de Lisboa.
Quanto à imagem do poder, houve uma tentativa de conciliação do regime tradicional com as novas ideias representativas. O partido da Bemposta, vencedor da abrilada, tentou, aliás, um governo de moderados, adepto do consensualismo tradicionalista, mas não teve autonomia, porque o apoio dado pelo corpo diplomático durante a abrilada, tornou D. João VI prisioneiro da política externa. A sede do poder esteve sujeita a uma série de pressões, onde se destacou a actuação dos embaixadores britânico e francês, com representantes directos no próprio ministério, e toda uma rede de actuação das sociedades secretas que hipocritamente foram proibidas. Foi também intensa a actividade dos apostólicos anti-maçónicos, com especial apoio espanhol e as manobras de Carlota Joaquina. O governo resultou de um equilíbrio entre o partido da Bemposta e o partido do Ramalhão, onde a rainha tinha já como principal instrumento o conde de Basto. Surgiu, entretanto, nova força anti-constitucional, aquilo que podemos qualificar como o partido da Junqueira, que funcionou junto do Cardeal Cunha, em íntima ligação com D. Carlota Joaquina. E não pode deixar de referir-se a facção dos Silveiras, mobilizadora dos meios militares e da nossa "gentry", em íntima ligação com os rainhistas. Marcante foi, sem dúvida, a influência externa, principalmente pelo jogo de influências entre o embaixador britânico e o embaixador francês, regressando o conflito entre o partido dos pró-britânicos e o partido dos pró-franceses.
Depois da vitória do vintismo, o governo de Londres, assumindo-se como intermediário entre Lisboa e o Rio de Janeiro, comunicava ao soberano Congresso reunido no Palácio das Necessidades que D. João VI aceitaria uma carta constitucional à maneira francesa. As cortes responderam que preferiam fazer uma constituição tanto ou mais liberal do que a de Espanha.
Assim, Palmela, saído da embaixada de Londres em Junho de 1820, depois de passar por Lisboa revolucionária, chega ao Rio de Janeiro em 23 de Dezembro e, logo em 22 de Fevereiro de 1821, apresenta a D. João VI um projecto de Carta para o rei dar aos seus povos sem esperar que eles lhe ditassem revolucionariamente a lei.
Já sete anos antes, em 1814, Silvestre Pinheiro Ferreira dera semelhante conselho, sem que ninguém lhe ligasse. Mas no dia 25 de Fevereiro de 1821, uma revolta de militares liberais no Rio de Janeiro impõe ao rei que a constituição a ser votada em Lisboa seja extensiva ao Brasil.
A solução moderada que em Lisboa também fora tentada pela Academia das Ciências e por Frei Francisco de São Luís, a única que convinha a autonomia de Portugal e do Brasil, iria naufragar nas ondas da política externa. Uma solução moderada que, partindo da nossa constituição histórica e seguindo os conselhos de António Ribeiro dos Santos de 1783, misturava o cartismo moderado francês com o constitucionalismo britânico, continuará, aliás, a ser advogada pelo nosso embaixador em Londres, D. Domingos de Sousa Coutinho, o conde do Funchal, em 1822 e 1823.
Mas a Santa Aliança manobrava e o sistema Metternich funcionava. No Congresso de Laybach de Maio de 1821 havia-se decidido esmagar a experiência liberal de Nápoles. Em Verona, entre 20 de Setembro e 14 de Dezembro de 1822, deliberava-se que a França destruiria pela invasão militar o liberalismo vigente em Espanha. Do Rio de Janeiro, o ministro dos estrangeiros de D. João VI, Silvestre Pinheiro Ferreira ia comunicando às Necessidades o que estava a passar-se, mas o congresso julgava-se soberano.
Quando D. João VI regressou a Lisboa, nos primeiros dias de Julho de 1821, foi o mesmo Silvestre Pinheiro Ferreira que elaborou e acabou por ler o discurso do rei face às cortes, advogando, com realismo, "a reunião da legitimidade da monarquia e deputados eleitos pelos povos… por maneira que se jamais o monarca assumindo a si o exercê-lo sem câmara dos deputados se reputaria o governo degenerado em despotismo, bem como passaria ao estado não menos monstruoso de oclocracia, se a câmara dos deputados intentasse exercitar, ela só, o poder legislativo". Ninguém atendeu a esta terceira via, entre o regresso ao absolutismo e o radicalismo jacobino.
Os interesses britânicos preferiam apoiar o separatismo brasileiro, concretizado no grito do Ipiranga de 7 de Setembro de 1822, pouco antes de entrar em vigor a Constituição portuguesa de 1822, em 23 de Setembro.
Os franceses em 7 de Abril de 1823 começavam a invasão de Espanha, para conservar no trono … um neto de Henrique IV, preservar este belo reino da ruína e reconciliá-lo com a Europa. Os tais 100 000 homens comandados pelo duque de Angoulême que levaram à restauração do absolutismo em 23 de Maio de 1823.
Continuarmos a pensar apenas nas divergências domésticas ocorridas entre 1823 e 1826, esquecendo que foi a chamada balança da Europa que nos proibiu quase expressamente de enveredarmos por um sistema de governo representativo. D. João VI é apenas o sinal da impotência portuguesa que, com muita manha, conseguiu fazer, das vulnerabilidades, aquelas potencialidades que nos permitiram resistir...em independência.
Com efeito, nesse período, a Espanha, a Santa Sé, a Áustria, a Prússia e a Rússia opuseram-se terminantemente a tal intenção, incluindo a própria convocação de Cortes à maneira tradicional. Nem sequer admitiram a concessão de qualquer Carta, ao género da francesa de 1814. E tanto a Inglaterra como a França não se empenharam no sentido de apoiarem as intenções de D. João VI nesse sentido.
Metternich, numa carta de 25 de Julho de 1823, manifestou mesmo fortes reservas ao cumprimento da promessa de D. João VI, depois da Vilafrancada, considerando que nem sequer era admissível uma carta constitucional à maneira francesa, porque aqui não se verificariam os condicionalismos da Restauração de Luís XVIII. Idêntica atitude era adoptada por Chateaubriand, dado que os dois temiam as consequências desse processo em Espanha. Aliás, este, em 12 de Fevereiro de 1824, num ofício enviado a Hyde de Neuville, nem sequer admitiu a reunião das cortes tradicionais portuguesas.
Com efeito, em Setembro de 1823, os representantes diplomáticos da Áustria e da Rússia reiteravam esses pontos de vista, reafirmados pela conferência de Paris da Santa Aliança de 14 de Agosto de 1824, que reuniu representantes da Áustria, da Rússia, da Prússia, da França e da Espanha. Especialmente insistente e pressionante foi a atitude do governo de Madrid, preocupado com a carta de lei de 4 de Junho de 1824, que repunha a constituição histórica portuguesa. Houve assim uma intromissão da Europa contra-revolucionária nos assuntos internos de Portugal, para utilizarmos as palavras de António Viana.
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