Tempo de sol, tempo menino
Há coisas que apetece dizer, mas que talvez já não saiba dizer como sabia, que talvez tenha medo de dizer, que talvez não possa ainda dizer, mas que assim ficam em fluidez, no suave travo amargo desta breve tristeza que apetece, porque o sol já me desperta. Um pedaço de tempo em que me guarde e resguarde do tempo que, em vão, não tenho. E esta pulsão de escrever-me, desvendando os recantos de quem sou e que, às vezes, nem eu próprio sei. E assim encruzilhado, por mim dentro, vou sentido mãos calcorreando as teclas de um piano e que me levam além de mim. E vencendo o frio da invernia, sou violino, cravo, nostalgia. Sou assim dentro de mim, ao calor da lareira, olhando lá fora, além das vidraças um velho quintal da Beira, as galinhas debicando, as abóboras ao sol, o espaço que vai da cozinha para a casa do forno, o limoeiro, o espaço da memória, em minha terra, a casa que já não tenho, a água correndo, o poço. Que aqui, não estando cá, eu próprio me sinto quem sonho. Aqui dentro, no aconchego do segredo e minhas mãos sem saber onde, no desnorte breve que me faz pensar.
Fecho-me, assim, longe dos outros, cujos discursos mentem e desejo que digam sempre o que todos sabem que convém dizer. Que todos se glosam em fileira, que todos se citam em contradita, que todos se rebaixam, destruindo o sentido da palavra. E temo que não chegue o tempo em que retome o verso que não penso. Temo que a esperança tarde, temo que não possa conjugar os sinais que me dão esperança. Essa ilusão de poder suster meu tempo, de poder olhar de frente o medo. Temo dizer, um dia, que jamais poderei chegar. Agora, não. É tempo de guardar semente para os dias que hão-de ser um dia. Que ainda me dói quem sonho e ainda sei livrar-me das névoas que me toldam o olhar. Que fique, assim, por muito tempo, como agora: nem angústia, nem versos, nem dias de intrometida fantasia. Apenas um tempo de espera à minha beira. À nossa beira. Que basta um breve sinal, uma palavra com asas, uma simples imagem, para que certos regressos me sitiem e esqueça versos de saudade.
E assim perdido, dentro de mim, pelos muitos restos de que sou feito, temo que desfaça em vontade os sítios que procuro. São estas mãos de solidão que sustêm as vaporosas memórias do meu signo. Uma escrita que vai além de mim, à espera do discurso que me dê sonho. E força, para a viagem necessária, para onde sigam meus braços e estas mãos que te procuram. Sempre. Sempre. Que sei do sonho de quem sou, dos braços, dos versos, dos destinos. Há sítios assim, desses de quem sou e que temo não voltar a ser. Das ribeiras que correm para o rio da pátria, das águas estiradas entre canaviais. Do castelo no centro da planura, a meio da tarde, dos cheiros a maresia, das traineiras que partem e que regressam, das muitas gaivotas que nos dão viagem. Há tempos que apetecem, quando sonhava este quem sou, este pedaço de estar aqui, sorvendo o sol, este resto de luz que vai furando a vidraça e me suscita este fluir da vida, estes acasos divinos que me dão verso numa qualquer curva do caminho. Estes imprevistos que, dia a dia, procuro, que, dia a dia, espero e me semeiam, mesmo que as mãos me não dêem o sonho de quem sou.
Sim, eu sei, sei dos leitos por onde seguem minhas mágoas, das margens escarpadas que não nos dão a praia do sossego. Sim, eu sei, do verso que hoje não chega, do fogo que apetece, do tempo que, dia a dia, me vai fugindo. Quando apetecia que meus versos me trouxessem, aqui, por dentro, no mais sonho, no mais fundo, nas âncoras breves das pequenas lembranças que suspendem a viagem, para que meu corpo de espera não mais se detivesse em mim. Sim, eu sei que, às vezes, não sou quem sonho, quando apetecia soltar-me desta revolta, nesse prazer de criar que me desse o que procuro. Mas a pátria que vou sofrendo continua a ser desterro, lugar de exílio, sítio de fim. Mas continua aqui em vão, em procura de um qualquer recanto, da esquina de meu quintal de menino, quando quase tratava as minhas árvores por um nome próprio, a figueira onde pousava, olhando o vale de inferno que sempre foi monte, a oliveira que um dia ardeu em dor, o muro cujas pedras desencontradas, em cruzada simetria, me deram desenhos de castelo medieval, e a minha cidade ao fundo, à sombra da torre, a cidade, as suas casas, as suas luzes, a sua gente, e os passeios ao domingo, em ritual de festa. Não, não deixei de ser esse menino, da quinta do monte florido, da casa amarela.
Agora, sou ruínas para reerguer, vida de cidade que reverdeça a minha cidade morte, da terra que já não tenho, os dias em que volta a espera, contra os muitos farrapos de trevas que não deixam sorver futuro. Sim, eu sei, ainda sou o sítio para onde vou. Que há cordas que ainda sustentam os tempos de um silêncio a que há-de chegar a sinfonia. E há tapetes de trigo, onde o verde do pão que há-de ser me dá desejo de seguir. E há sinais de um calor de lar, olhos plenos de sol por onde há-de seguir a minha história. Sim, eu sei que serei quem sonho ser. Mas apetecia bem mais do que a memória de um tempo que ainda trago. Um sonho que à minha beira me sorvesse. Que à minha espera, eu próprio me pudesse olhar de frente, a fúria de um silêncio que me desse o tempo de sorver quem sou. Bem apetecia que o tempo todo me desse o breve tempo da ternura que ainda falta. Para que eu pudesse conjugar as coisas simples, feitas de esperança. Mas não sei se conseguirei reter, das novas, os muitos sinais que me chegam, num repente, os muitos dias de uma amargura onde, breve, me detenho. Sem que o tempo me traga a singeleza de um olhar, o tempo de um poente por cumprir, olhando as vagas de um fluir onde serei o infinito. E não me chega o verso que me falta.
Não me chega o verso por sorver. Não me chega chegar onde não quero, quando meu viajar é não parar, é seguir quem sonho, pelos sinais de quem sou, seguir meu tempo, na procura de um verso por sentir. A noite será quem sonho ser. Um dia. Agora, não. Aqui, na solidão de um sítio que não sei, onde, na cumplicidade das coisas que não posso dizer, sinto que, estando, não sou inteiro e que, preso no sonho, vou fingindo que não sou a solidão do tempo que não sei e que, dentro de mim, me dará, por fim, o breve lugar do tal tempo que não tenho. Sim, eu sei, que duvido até de quem, na verdade, sou. Que, na espera do tempo para onde vou e de quem sou, trago, em verso por fazer, a corrente de um silêncio que me sorve. Há um curso que não para, um rio que, dentro de mim, além de mim, me dá o frenesim da espera, onde verto, no breve de um verso que não chega. Que sinto ser, em qualquer encruzilhada, num qualquer lugar, o signo que me trará a doce espera.
Sim, eu sei, tenho a certeza de saber que amanhã serei e não serei. E que um dia, com certeza, de um momento para o outro, deixarei de ser, quando, em verso, detiver quem sonho, quando, na estreita singeleza de meu sonho, eu puder, um dia, voltar a conjugar-me. Agora, não. Me falta o pedaço de terra que me dá ser, onde poderei suster a âncora que me dá esperança, o rosto de quem, olhando o sol de frente, pode ainda ser a sua espera. Sim, eu sei, que num qualquer recanto acidentado, poderá chegar o aconchego, das mãos que me esperam sempre, Um pedaço de terra, um abrigado recanto, quando meu corpo, feito navio, puder, enfim, ser meu próprio fim, lavrando os sinais das flores que de mim nascerem. Quando, por entre searas, pelos sinais de um vento que semeei, puder dar ao tempo que há-de ser, as correntes da espera que me dão alento. E entre salinas e praias, uma terra de vento, uma terra de salga, varinas de xaile negro que já não há, memórias de pesca, casas feitas de conchas e um sol de inverno que vai limpando quem sou dos restos perdidos de um pedaço que apetece não esquecer. E o vento que pára de me dar sinal de um corpo que já não está aqui, de quem eu sou, este menino que ainda sou e que jamais deixarei de ser. Por ti.
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