O trono e o altar...entre os desvarios da espada e os devaneios do báculo, com micro na esquerda
Precedendo o presente ritmo de comícios de Estado, o primeiro-ministro demissionário foi objecto, há menos de um mês, em plena seca de São Pedro, de uma cerimónia onde, numa aliança de rectaguarda entre o humanismo laico e o humanismo cristão, usou a espada do Orçamento de Estado para receber a benção do báculo, sem ter que ouvir teorias sobre o gnosticismo de quem nunca citou Eric Voegelin ou Leo Strauss. Transcreva-se a notícia de um jornal regional:
Um banho de multidão, a inauguração de uma obra que custou quase seis milhões de euros e os rasgados elogios de um presidente de Câmara, foram motivos de sobra para que Pedro Santana Lopes saísse revigorado da visita a Alvorninha no passado no dia 22 de Janeiro.
O primeiro-ministro inaugurou a barragem de Alvorninha numa cerimónia simples que contou ainda com a presença do seu Ministro Adjunto, Rui Gomes da Silva, do Ministro da Agricultura, Costa Neves, e do secretário de Estado da tutela, David Geraldes, entre muitas outras individualidades. Foi notória a ausência de qualquer autarca ou responsável local do PS, PCP ou BE.
Para abençoar a barragem esteve presente o Cardeal Patriarca, D. José Policarpo. O “filho” mais ilustre da freguesia de Alvorninha não poderia deixar de estar presente neste acto, principalmente sendo uma infra-estrutura que é para servir a comunidade.
Na cerimónia, o Cardeal Patriarca sublinhou que durante a obra não houve acidentes de trabalho a registar. “Isso é já uma grande graça”, disse, adiantando que a sua utilização deve ter agora sempre em conta que tudo o que recebemos é para agradecer. “Há uma atitude na vida que não podemos desenvolver, que é pensar que tudo nos é dado como se tivéssemos direito a ela. Há muitas coisas que nos são dadas e que devemos ser dignas delas”, afirmou.
Foi principalmente de agradecimentos que constituíram grande parte dos discursos nessa tarde. O presidente da Junta de Alvorninha, Virgílio Leal, estava tão orgulhoso com a presença de tal comitiva governamental que a comparou à passagem de D. Afonso Henriques pela freguesia em 1143, quando ali pernoitou na viagem que fez de Leiria para conquistar Santarém aos Mouros. “Apenas nesse ano por aqui terão passado personagens com tanta responsabilidade no país”, considera.
O presidente da Câmara das Caldas aproveitou a deixa para considerar que Pedro Santana Lopes é “um outro conquistador que passa pelas terras de Alvorninha”. Na sua opinião, no momento difícil que o país atravessa “só um homem muito corajoso e determinado, ainda que atacado por todos os lados, pode levar Portugal a bom porto, como D. Afonso Henriques, o conquistador”.
O que custa na recente intervenção de D. José Policarpo, sobre o perigo maçónico, é que um magno chanceler universitário possa exercer processos de censura a nível do pensamento filosófico, de modo semelhante ao que fez Manuel Arriaga, quando, em 1911, ao tomar posse como reitor da Universidade de Coimbra, determinou que a doutrina oficial da instituição fosse o positivismo, levando à bela reacção do então estudante Manuel Paulo Merêa.
Assim, um qualquer analista do pensamento político também poderia dar-se ao luxo de fazer, hoje, o mesmo tipo de pesquisa sobre o desviacionismo luterano ou positivista no presente ensino jurídico-político da universidade concordatária, e até citar os inúmeros pensadores de filiação maçónica que aí são objecto de veneração, começando por Immanuel Kant. Também poderia indicar várias universidades norte-americanas de filiação maçónica que aí são invocadas protocolarmente, em nome do subsídio. O que temos de protestar é contra as ameaças ao pensamento livre, quando se esconjura o livre-pensamento.
Nenhum cardeal, patriarca, bispo, padre, doutor ou numerário tem suficientes requisitos para dizer que é o único que pode penetrar nas profundezas do movimento livre das correntes de ideias e passar a ditar o bem e o mal, mobilizando, em nome do báculo, a espada da retaliação e criando mecanismos que poderão obrigar altas figuras de Estado a não mais sugerirem a utilização de casas mortuárias anexas a instalações de monumentos nacionais que são usados para o culto católico. Assim podemos pisar os terrenos da intolerância e emitir comunicados que podem ser instrumentalizados por forças políticas em plena campanha eleitoral. De outro modo, poderemos concluir que certos ventos congreganistas podem voltar a soprar contra a lusitana antiga liberdade e os duzentos anos de demo-liberalismo.
Portugal não voltará a reduzir-se aos limites estreitos dos quintais das sacristias, das pranchas carbonárias ou das reflexões celulares, que se auto-decretem como o caminho e a verdade. São mais fortes os homens livres donos de um pensamento livre. Os que não se deixam algemar por quem possa pensar-se herdeiro dos inquisidores, benzidos ou laicos. Cá por mim, contra todas as sugestões, continuarei a citar Kant e a invocar Espinosa, São Francisco de Assis, Teilhard de Chardin, Agostinho da Silva, Gilberto Freyre e Fernando Pessoa. Até considero João Paulo II um dos mais corajosos homens do pensamento em acção do último quartel do século XX, porque ele, mesmo nas encíclicas, sempre disse escrever para os homens de boa vontade. E pelo que aqui escrevo, já sei que não mais voltarei a ser convidado a proferir qualquer tipo de conferência na Universidade Católica, mesmo que seja sobre a militância no MES, até Dezembro de 1975, do grande guardião do pensamento integrista que comanda a instituição.
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