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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

6.2.05

"Basta! É preciso mudar" (mestre Alberto, dando água salgada à força interior)



A campanha começou. Como todas as campanhas. Com populismo descarado, demagogia absurda e procura de um discurso eficaz. E, no primeiro "round", saíram derrotadas as sondagens, porque os partidos governamentais conseguiram que as maiores fatias de povo acedessem aos respectivos comícios. Para descanso dos socialistas, direi que quando Guterres ganhou as suas primeiras eleições, eu que corri por dever de ofício todos os comícios de encerramento da campanha realizados em Lisboa, pude comparar o gigantismo dos laranjas com a pobreza mobilizadora dos rosas.

Lembro-me sempre desta experiência quando assisto a lições sobre comicionologia comparada e reconheço que o maior partido de militantes existente em Portugal é, sem dúvida, o PSD. Mas tal não significa que, de vez em quando, o PS não consiga mais votantes. Também há cerca de uma década e meia, eram os comunistas os principais mobilizadores de massas e os mais eficazes organizadores de comícios e festas, à excepção das grandes romarias e peregrinações religiosas.

Qualquer analista frio destas coisas sabe que as sessões de propaganda, com recurso a bandeirinhas, video wall, artistas de variedades, enlatados em play back e autocarros de transportes tanto são uma festa da militância como uma das mais eficazes formas de pressão sobre a opinião pública. Aliás, hoje, o comício obedece a uma rigorosa cenografia, utilizando requintados instrumentos tecnológicos que não se resumem ao teleponto. O comício visa, sobretudo, dar cenário a uma retransmissão televisiva dando a sensação de esmagar o telespectador, ao querer transformá-lo em mero auditor passivo de um espectáculo rigorosamente ensaiado, embora sem as marcações orientais do gigantismo de Kim Il Sung.



Por causa desta euforia comicieira, a que se associam os grandes operadores da comunicação social, é que nem ministros nem líderes da oposição que já se assumem como ministros se dão ao luxo de seguirem as recomendações, conselhos e deliberações da Alta Autoridade para a Comunicação Social ou da Comissão Nacional das Eleições. Quem tem unhas é que toca o violão e tem razão quem vence.

Por isso é que a intervenção de mestre Alberto do Funchal, em apoio à "força interior" do "contenente", assumiu a dimensão de genial objecto laboratorial, digna de um qualquer Kumba Já Cá. Ficámos a saber que o Partido Socialista não passava de um partido conservador, que a comunicação social mente e deturpa, à excepção do Jornal da Madeira, onde o governo regional da região tem uma esmagora coligação com a Diocese do Funchal e onde o chefe do dito escreve todos os dias um lençol. Ficámos também a conhecer que "esses da banca que não pagavam (impostos), Santana pô-los a pagar... certo capitalismo que se esqueceu do que passou no 25 de Abril..." e que foi para o "off shore" da ilha irmã do Porto Santo. Mais nos foi informado sobre a luta do ministro da justiça "contra fortes interesses corporativos" e que a dissolução sampaista foi "uma das maiores aldrabices que se fez ao povo português".

Felizmente que mestre Alberto gritou: "Basta, é preciso mudar". Como se ele não fosse o governante que há mais tempo está no poder. Como se Santana não fosse o primeiro-ministro e o PSD, o campeão dos situcionismos e dos situacionistas, até por ser o partido que mais nos governou até agora. Concordo: "vamos derrotar os interesses que estão a dar cabo de Portugal".



Mas tudo se prepara para o momento grandioso. A música do menino-guerreiro. Os militantes de olho posto no écran, onde aparece Conceição Monteiro, Pedro a ajoelhar-se diante do Papa e a assinar a Constituição Europeia. As palmas desabam. As bandeiras agitam-se, republicanas e monárquicas, laranjas e verdes. Acabou a música, Santana aparece, abrem-se filas, caminha para o palanque, a música é celestial, o momento, transcendente. O homem já é super-homem, mas, mesmo assim, cumprimenta o apóstolo Eurico e o apóstolo Alberto. O tempo está a mudar. A salvação ameaça-nos.

Coitado do PS e do Guterres... Ficou-se com bandeiras brancas na parada do quartel de cavalaria, diante de um palco verde, com gente mais serena, música menos forte, encenação mais clássica. Não teve oitocentos quilos de carne, militantes do lisboeta Bairro da Boavista, gratos a Helena Lopes da Costa, nem tantos velhinhos e aposentados. Será que os votantes são inversamente proporcionais aos comiciantes? Porque se assim não for, até Paulo Portas, com as massas da classe média e a massa dos convivas do Nicola, no Cristal do Porto, os superou, para matar o pai-fundador que não foi à parada de Sócrates. As sondagens serão mesmo falcatrua, embuste, vigarice dos que querem o tacho? "O povo não se engana... mas que fará de Santana"?.