Entrevista concedida a Nuno Dias da Silva, semanário "O Diabo"
"Os que agora elogiam o Governo vão criticá-lo sem piedade"
- "O drama das nossas elites é que elas não são elites, são heranças"; "As festas do "Avante" do PC são uma espécie de sucedâneo da peregrinação a Fátima e a própria Catarina Eufémia é uma espécie de profeta adaptada"; "O BE tem uma cultura de esquerda revolucionária adocicada"; "Foi Cavaco Silva que fabricou este PSD e aplica a "Lei de Gresham" aos seus filhos: Santana, Durão, Mendes e Loureiro"; "O dr. Mário Soares, se tivesse a coragem de Churchill, candidatava-se às presidenciais. O mesmo se aplica a Adriano Moreira ou a Freitas do Amaral. A democracia não pode ter treinadores de bancada". Estas são algumas das ideias-força da entrevista de Adelino Maltez
Nuno Dias da Silva
Ricardo Guilherme (fotos)
O DIABO - Lançou recentemente o II volume de "Tradição e Revolução" em que traça uma biografia do Portugal político de 1820 à actualidade. Constatou alterações significativas ao longo destes quase dois séculos?
As nações são como pessoas em ponto grande: nascem, crescem e morrem. Um País com oito séculos e meio como é o nosso, só existe e permanece, porque foi sendo sucessivamente reinventado por cada uma das gerações. Portugal é uma grande nação porque em qualquer momento histórico consegue recriar as suas próprias identidades. Por isso, considero que é um milagre Portugal existir e ter sobrevivido a tantos duros golpes.
Quer especificar alguns desses delicados momentos?
O século XIX teve vários revezes para Portugal. Perdemos o Brasil, sofremos crises profundas e sangrentas guerras civis. E, ao contrário de outras nações da Europa, de maior dimensão, conseguimos, qual casquinha de noz, navegar naquilo que Almeida Garrett qualificava de "Portugal na balança da Europa". Mas perante os desafios da perda do Brasil, das invasões napoleónicas, da guerra civil e da "Maria Fonte", e já no século XX, quando tivemos os efeitos da descolonização e da integração europeia, soubemos sempre recriar a nossa identidade. Por isso, não sou nada pessimista em relação ao futuro do meu País, apesar de a História de Portugal ser a História da crise.
Que acontecimento marcará indelevelmente Portugal para sempre?
O maior traumatismo da História portuguesa foi a perda do Brasil. Investimos tudo lá e até digo mais: deviamos ter mudado o nosso nome para Lusitânia. A "república dos portugueses" não é a herdeira completa de oito séculos de História nacional, porque o Brasil deixou de ser parte integrante desse património.
Somos um povo vencido na História, mas não somos os únicos: os húngaros e os russos também padecem do mesmo mal e arcam às costas com o estigma da derrota.
O sonho e a utopia não condicionam em demasia a nossa existência?
O português nunca gostou de utopia, exceptuando a extrema esquerda e a extrema direita. Camões escreveu em "Os Lusíadas" no canto IX "A Ilha dos Amores", considerando-o o sonho erótico nacional. O descobridor das Índias foi premiado com uma das ninfas - ou seja algo de palpável. O português não é o D. Quixote, mas sim o Sancho Pança. Alguns empedernidos e pretensos donos da democracia em Portugal, como o dr. Mário Soares, dizem que somos uma "jovem democracia", o que é um disparate, porque o sistema não nasceu nem em 1974, nem com ele.
"Os políticos "vira-casacas" estão na moda"
A política e os políticos estão em crise?
A História é um laboratório e temos tido falta de política experimental, que é a mãe de todas as coisas. Os políticos têm muita falta de conhecimento experimental da política. O sistema político é ainda um clube fechado.
Qual é a receita para sair desse casulo?
Se eu fosse ditador durante 24 horas obrigava toda a classe política portuguesa a ler três obras fundamentais da literatura clássica: "Portugal Contemporâneo", de Oliveira Martins, "As Memórias Políticas" de Raúl Brandão e a "Conta Corrente" de Virgílio Ferreira. No fundo, três dos maiores captadores da alma portuguesa que traçaram o mesmo diagnóstico de realismo do País. O que assistimos é a um assalto aos mecanismos de formação da opinião pública. Veja que acabaram com o livro único do salazarismo e inventaram um livro único subreptício que se intitula "O Dicionário do Estado Novo" do Prof. Fernando Rosas, que no fundo é uma obra do politicamente correcto desta geração de frustrados do Maio de 68 que são especialistas em fazer uma História oficiosa.
Entende que a política está longe de ser uma escola de virtudes?
Os políticos "vira-casacas" estão na moda. Todos se espantam com o trajecto do prof. Freitas do Amaral, quando ele está a seguir a tradição dos "adesivos" da História: republicanos que foram "servidores" do 28 de Maio, ministros de Salazar que se transformaram em grandes democratas depois do 25 de Abril, monárquicos que deram em republicanos. A grande inspiração do classe política em Portugal é a "viradeira". Razão tinha o capitão Salgueiro Maia, que no Largo do Carmo, disse que para além dos vários tipos de Estado, havia o "estado a que chegámos" e em Portugal a "viradeira" é o principal dos estados a que chegámos.
E para além da mudança de posicionamento político, em que mais aspectos se traduz o espírito da "viradeira"?
"A viradeira" do actual espectro político traduz-se na falta de coerência, no arranjar de um discurso notável para mudar de posição confome a prebenda ou a condecoração de lata que se recebe, vulgo "tacho", boas relações com uma senhora muita conhecida em Portugal que é a "D. Maria da Cunha" e, sobretudo, a falta de vergonha.
Quer identificar personagens que tenham dado exemplos de "falta de vergonha"?
É por estas e por outras que o prof. Freitas do Amaral é o espelho da nação. Esteve para ser ministro com Marcelo Caetano e recusou, foi o líder do partido mais à direita de Abril e agora integra um governo socialista. Há em Portugal uma classe política extremamente hábil, flexível e que tem o cuidado de fazer investimentos em pluralidade de pertenças mas, no fundo, são sempre os mesmos. O clube de recrutamento da classe política portuguesa é demasiado exíguo para as necessidades. O povo ainda não chegou ao poder das elites.
O País está a ressentir-se desse distanciamento entre o povo e as elites?
O drama das nossas elites é que elas não são elites, são heranças; não são nobres, são fidalgos. Mas esse cenário está e vai continuar a mudar e o recrutamento vai tender para que a democracia se oriente para uma lógica meritocrática.
Álvaro Cunhal é apresentado como um exemplo de coerência, mesmo pelos que sempre discordaram dele. Como pessoa da direita, partilha dos elogios ao líder histórico?
O dr. Cunhal foi o último representante do sovietismo em Portugal e quis implantar o totalitarismo no nosso País. Mas o PC de hoje é um partido telúrico e naturalmente patriótico, porque tem raízes profundas em termos sociais, o que me leva a considerá-lo provavelmente um dos partidos mais genuinamente portugueses e com uma forte componente religiosa: as festas do "Avante" são uma espécie de sucedâneo da peregrinação a Fátima e a própria Catarina Eufémia é uma espécie de profeta adaptada.
O BE é um partido da moda ou augura-lhe uma longa vida?
A sua cultura de esquerda revolucionária adocicada, com umas pitadinhas de "Porto Alegre" e duas leituras de autores de moda, continua a ser adversária à minha concepção de ver o mundo e a vida. Os resquícios estalinistas, inquisitoriais e de um "pidismo" vermelho, emergiram quando o BE analisou o Pontificado de João Paulo II.
Não é possível reeditar à direita um partido nos mesmos moldes do BE?
É um disparate dizer que a direita precisa de ser refundada, quando é sabido que depois de 1974 mais de metade dos actos eleitorais foram vencidos pela direita. Os debates suscitados sobre o futuro da direita surgiram por via do oportunismo político dos drs. Marques Mendes e Menezes, que disseram que não eram de esquerda. De vez em quando, o PSD pensa erradamente que a direita e a esquerda são posições ontológicas.
"O PS é um partido do extremo centro"
Ainda faz sentido a tradicional separação entre a esquerda e a direita?
Tudo é relativo. A esquerda e a direita não são as boas intenções, são as práticas. Recorde-se que o dr. Mário Soares foi a direita contra o PREC; na actualidade ele pode proferir declarações de determinada natureza, porque já entrou no regime da impunidade senatorial e fundacional, que é um privilégio que apenas cabe a alguns gerontes da política nacional.
A prevalência crescente do "centrão" descaraterizou os partidos do arco do poder?
Denunciar o "centrão" é denunciar um perigo e um vício da falta de diferenças, de combate e do caminhar para a degenerescência. As democracias estão a ser destruídas por dois fenómenos: o indiferentismo e a corrupção - quando é sabido que estes fenómenos crescem a olhos vistos. Os dirigentes do PS e do PSD sentem-se aflitos quando são acusados de alimentarem o "bloco central dos interesses".
Sá Carneiro teve o mérito que o regime em que vivemos não fosse de direita ou de esquerda, mas de todos, tendo conhecido alternâncias. O segredo da durabilidade do regime reside nesse ponto. A democracia derrubou Santana e Portas, recentemente, antes Durão, e mais para trás Guterres, Soares e Cavaco, sem o recurso a uma gota de sangue. O que é salutar em democracia é fazer "golpes de estado" sem derramamento de sangue.
No dia 20 de Fevereiro, o país virou à esquerda. Pode concluir-se, como disse Mário Soares, que mais de metade do País perfilha essa inclinação ideológica?
Na leitura do dr. Soares devemos ser o País mais feliz e mais à esquerda da Europa. Mas respondendo-lhe directamente, penso que o PS hoje é um partido de extremo centro e se a esquerda crescer como tem vindo a crescer, os socialistas posicionar-se-ão em breve à direita no espectro político.
Reconhece a Mário Soares o papel de "Pai da Pátria" que alguma opinião pública lhe atribui?
"Pais da Pátria" só conheço o Afonso Henriques. Creio que essa lógica dos "senadores" é fabricada pela comunicação social. Por que é que o general Eanes, que teve um papel fundacional na democracia portuguesa, é reiteradamente afastado de esse leque de "senadores"? Porque era inimigo do dr. Soares e por razões politiqueiras de fabricação de imagem.
Fica chocado quando vê os rivais nas presidenciais de 1986, Soares e Freitas, a perfilharem ideias políticas semelhantes?
Não. Freitas e Soares são iguais: "les beaux esprits rancontrent". Eu não retiro o mérito que Soares teve como professor da democracia, mas os mitos têm de ser cultivados com cuidado. O pior é que o dr. Soares com o avançar da idade insiste em flutuar ideologicamente, tendo regressado ao estalinismo e, pior, a um estalinismo de revisionismo histórico. Um homem que criou um certo modelo de socialismo anti-soviético, não pode estar presente nos foruns de Porto Alegre. Soares pensa que é o dono das interpretações da História portuguesa. Qualquer dia só os escritores que vão à "Fundação Mário Soares" é que são "elegíveis".
Falou atrás da fabricação de cenários na comunicação social. Pensa que a esquerda domina os "media"?
Temos a direita que convém à esquerda e a esquerda que convém à direita. Quem está a fabricar os cenários políticos é a esquerda instalada na comunicação social que cria uma direita conveniente.
Dizer que com a vitória de Sócrates o País atingiu o estado de graça e o paraíso, é teológico, porque, ou muito me engano, ou daqui a dois anos, os que agora elogiam o Governo, vão criticá-lo sem piedade. As altas expectativas vão redundar em frustrações. Não há condições estruturais para sairmos das boas intenções e passarmos para a prática. O Estado português não é uma estrutura passível de se carregar num botão e mudar tudo de um dia para o outro. O aparelho de Estado está desfazado das necessidades reais do País por falta das reformas no tempo certo.
É em uma legislatura que se faz essa "revolução" no Estado?
Com ímpeto reformista dava-se a volta ao País numa semana. O que é preciso é coragem para enfrentar os interesses e as corporações. Aliás, todas as grandes transformações no Portugal contemporâneo foram feitas pelos governos provisórios. Penso que precisávamos periodicamente de momentos de pausa supra-partidária, para não entrarmos em momentos de agonia, como aconteceu com a decisão do dr. Sampaio de reconduzir o Governo de coligação após a saída de Durão. Todos sabiam que ia dar asneira, até o próprio Santana Lopes - que vale mais do que isso - não merecia a forma caricatural como foi tratado.
Que interpretação faz da decisão do P.R.?
Sampaio é um político anti-risco, super cauteloso e que está a trabalhar para a História, mas creio que nem ficará como uma nota de pé de página. Portugal precisa é de políticos de risco: Sá Carneiros, Eanes e alguns Soares. Os que perdem e ganham.Temos cada vez mais políticos de máquina calculadora em punho e alguns deles encarnam o espírito de Pilatos.
"A política apodreceu pelo situacionismo"
Sócrates parece-lhe um político de risco?
Eu acho que este pode ser o último Governo da III República e, como disse o dr. Mira Amaral, espero que Sócrates não seja o Marcelo Caetano da III República. Creio que este Executivo tem condições para durar no máximo duas legislaturas, até porque o PSD não chega lá com lideres de transição. Agora: ou as legislaturas resultam ou tem que existir uma recomposição global do sistema. O cerne da questão reside nos partidos que perderam a sua função, muito por culpa das suas estruturas demasiadamente conservadoras que não se transformam por via de uma "bebedeira" eleitoral.
A concepção dos partidos está equivocada?
É necessário uma reeducação ecológica dos partidos e que deve residir na formação. Os partidos políticos portugueses não têm boas escolas de quadros, as universidades de verão são folclóricas, os autarcas estão a perder qualidade, etc.
Diz que temos tido líderes de qualidade média. Precisamos de estadistas ou de homens providenciais?
Portugal precisa de bons líderes, bem formados e de movimentos de massas entre as elites, ou seja meia centena de políticos do PS ou do PSD com características para serem chefes de Governo ou ministros - em suma, aumentar a qualidade da base de recrutamento dos partidos. A política em Portugal apodreceu pelo situacionismo.
A política está transformada no premonitório "pântano" de Guterres?
Ele tinha alguma razão quando disse isso. Mas já Platão alertava para a degenerescência da política. Podemos entrar é numas águas chocas e o perigo reside na ilusão da regeneração verbal: o PS ganhou e, logo a seguir, qual varinha de condão, anunciou-se que a pátria estava regenerada. Tal qual como no futebol, passámos de bestas a bestiais em termos colectivos. É esquizofrénico e anti-reformista, quando se sabe que a lei eleitoral continua a ser inadequada, o sistema político continua a carecer de mudanças, a Constituição continua a ser má, os deputados estão longe dos eleitores, etc.
A principal enfermidade do sistema reside na sofrível qualidade dos políticos, como disse Cavaco quando recuperou a "Lei de Gresham"?
Cavaco tem estado a fazer campanha eleitoral. A "Lei de Gresham" traduz-se na lógica do mais forte e na teoria do homem de sucesso. Eu defendo mais uma leitura de teologia da libertação do que propriamente a lógica economicista. Creio que o prof. Cavaco teve muitas responsabilidades na criação da mentalidade do homem de sucesso: uma coisa do tipo do "sapateiro de Braga", em que ou há moralidade ou comem todos. Para resolver o problema da fuga ao fisco não se vai lá com leis, mas com uma atitude moral. Em Portugal, a palavra dada devia ser mais valorizada do que o protótipo do homem de sucesso.
Cavaco é demasiado tecnocrata?
Nenhum tecnocrata regenera a política. Foi Cavaco que fabricou este PSD e aplica a"Lei de Gresham" aos seus filhos: Santana, Durão, Marques Mendes, Dias Loureiro. No fundo, toda a elite dirigente do PSD foi fabricada por Cavaco. Agora quer matar os seus próprios filhos, quando devia ter orgulho neles. O "cavaquismo" é pai do "barrosismo" e do "santanismo". O PSD só cresce quando se libertar do paternalismo de Cavaco. Cavaco é para o PSD, tal como Soares para o PS, o eterno ausente-presente. É a ditadura do passado sobre o presente. O dr. Soares, que tanto fala, se tivesse a coragem de Churchill que concorreu a eleições com 77 anos, candidatava-se às presidenciais para medir a sua influência eleitoral - o mesmo se aplica ao prof. Adriano Moreira ou ao prof. Freitas do Amaral. Com o protagonismo deste tipo de pessoas, Portugal caminha para ser uma gerontocracia. A democracia não pode ter treinadores de bancada, nem políticos que só dão prognósticos no final do jogo. Precisamos de contributos cívicos.
"A Educação está ministerializada e partidarizada"
Quando é que a Educação deixa de ser uma paixão e passa a ser um amor nacional correspondido?
A paixão dos portugueses pela Educação é a paixão pela igualdade de oportunidades. O pior é que entregaram essa missão a um gastador nato chamado Estado e ainda por cima ao Ministério da Educação. Temos hábitos de um País sumptuário: universidades e cursos a mais, que ninguém ousa contestar em nome dos interesses corporativos. O sistema educativo está estatizado, ministerializado e partidarizado. É preciso que "ardam" os aparelhos controladores da Educação, juntamente com os "educacionólogos", os "avaliólogos", etc.
São urgentes medidas de ruptura no sistema?
Os últimos ministros da Educação que tivemos foram os profs. Veiga Simão e Mário Sottomayor Cardia, os seguintes foram todos filhos e netos. Parafraseando Frei Bartolomeu dos Mártires no Concílio de Trento, a primeira condição para uma nova política de Educação nacional é "uma reverendíssima e excelentíssima reforma". Mas continua-se sempre à espera. Os problemas de Portugal resolvem-se numa semana, com um Governo provisório e liquidando-se os mitos prevalecentes.
A burocracia é outro dos eternos atavismos do sistema?
Como docente universitário que sou, passo metade do meu tempo a endereçar documentos para as comissões de avaliações para que tudo fique na mesma. As decisões cruciais para a Educação estão na mão de pessoas que há trinta anos não sabem o que é dar uma aula ou fazer uma investigação. Nas escolas, ainda se discute o "sexo dos anjos", não se dão lições de saber ou de humanismo, e a "D. Maria da Cunha" está demasiado omnipresente. Os concursos para professores em Portugal são todos feitos corporativamente para os oligárquicos conselhos científicos. Nas universidades entra-se como Monitor e sai-se como Catedrático, por antiguidade. É preciso abrir as portas e as janelas para haver concorrência. Estamos a precisar, outra vez, de uns "estrangeirados" com bom senso.
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