Para uma certa leitura liberal das heranças corporativas. A questão dos médicos e da indústria farmacêutica
Graças ao Carlos Pinto Coelho, ouço o cansado debate do médicos contra médicos, na eterna denúncia dos fumos sobre os jantares, as férias e acções de formação de fim-de-semana, subsidiadas pela indústria químico-farmacêutica, na tal propaganda médica, dita investigação científica, formação permanente ou até cooperação deontológica. A indústria cumpre o dever de procurar o lucro, dentro das regras emitidas pelo Estado e pela entidade a quem o mesmo delegou competências públicas, a Ordem dos Médicos. O ministro da ciência, entretanto, pode andar distraído e pensar que, nos relatórios assexuados, isso significa choque tecnológico ou investimento em ciência, enquanto certas denúncias de ida às praias algarvias ou jantares de gala são consideradas ofensivas, porque o ónus da prova compete ao acusador.
Não critico quem procura o lucro, das indústrias e laboratórios empresariais, aos médicos que, cumprindo a deontologia, fazem negócio. Critico-me a mim mesmo por ser mortal e ficar doente. Critico a comunidade, que somos nós todos, e confirmo a ineficácia dos aparelhos de Estado, que continuam a deixar que se confunda o público com o privado, nessas zonas místicas, onde continuamos a não saber usar, como deve-ser, o princípio da subsidiariedade, o pluralismo e a auto-regulação.
Façamos a devida autocrítica. Esquemas de auto-regulação como a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Advogados são duas belas heranças que recebemos do salazarismo, mas que ainda hoje vivem hibridamente entre os males do corporativismo de associação e do corporativismo de Estado. Pior do que isso: com a democracia, não se democratizaram no sentido do pluralismo e da poliarquia.
Tivemos a ilusão abrileira de as podermos transformar em mero sindicalismo. Entre o sindicalismo dos empregados por conta de outrém e o sindicalismo dos patrões. Entre as ilusões unicitárias do colectivismo e o jacobinismo do associativismo de egotistas. E assim espremidos entre o individualismo do porco-espinho e o estatismo do rolo compressor da generalidade e da abstracção, não tivemos tempos de pausa para reconhecer a necessidade de uma reeducação ecológica pluralista, com a consequente auto-regulação publicamente controlável. Onde o público não tem que confundir-se com o estatismo nem o privado, com o negocismo. Apenas direi, usando uma velha mas judiciosa observação de António Alçada Baptista, numa carta a Marcello Cetano, em como não costuma haver liberais em Portugal.
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