a Sobre o tempo que passa: A questão liberal e a superveniência do confessionalismo

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

23.4.05

A questão liberal e a superveniência do confessionalismo



A superveniência de tópicos confessionais que tem vindo a enredar a partidarite lusitana levou a que renascesse o tradicional conflito entre a política e a religião, que parecia sepultado na pós-revolução. Regressou-se assim aos confusos tempo do demoliberalismo e do salazarismo, com o retomar dos fantasmas do congreganismo e do anticongreganismo. Parece que já esquecemos os próprios tempos de institucionalização da democracia, quando o grande partido anticomunista fez com que católicos e laicos convergissem tanto nas manifestações promovidas pelos bispos-condestáveis como nas várias alamedas desencadeadas pelo PS e pelo PPD.

No seio do PS e do PSD ainda se misturam maçons e militantes catolaicos, mas quando os ventos de Roma apontam para aquilo que é qualificado como luta contra a ditadura do relativismo, o ambiente interno português, onde ainda não se resolveram questões como a IVG e as uniões de facto, pode ser propício para o regresso aos fantasmas.



A questão político-religiosa, disfarçada pelas cláusulas gerais da defesa da vida e da família tradicional, pode levar a que as pulsões reaccionárias traduzam em calão maniqueísta tão complexos valores, com os consequentes equívocos. E tudo se agrava neste ambiente de pequena política, típica do regime dos tarimbeiros, marcado pelo ritmo dos "soundbytes" e de certo fundamentalismo discursivo.



Pior do que isso: quando as presentes e futuras lideranças de direita, cedendo à chantagem de certa esquerda, que fabrica as chamadas "causas de direita", da tal direita que convém à esquerda, as posturas liberais da esquerda da direita e da direita da esquerda, num país pouco habituado à tradicional postura dos radicais do centro, que, por muitos, ainda é confundida com o centrismo equidistante do cobarde rigorosamente ao centro, ambas as atitudes políticas, mais culturais do que políticas, aliás, acabam por dispersar-se entre muitas capelinhas, mais ou menos ortodoxas, mais ou menos estrangeiradas.



Aqueles que pretendem manter a antiga, mas não antiquada postura liberal, azul e branca ou republicana, começam assim a perder a possibilidade de intervenção cívica. Basta também recordar como foi instrumentalizada a ideia liberal por certos clubes dos finais da década de oitenta, onde os mais mediáticos de direita se benzeram como democratas-cristão e os mais badalados de esquerda se volveram em sociais-democratas ou socialistas, ao mesmo que, pela via da importação, começaram a pulular muitos grupos neoliberais que costumam rivalizar entre si, conforme os encontros imediatos de pretenso primeiro grau que cada um deles tem com certas universidades ou certos clubes de fans de alguns autores.

A própria inelasticidade do sistema político-partidário, bem como os erros cometidos por alguns projectos, para não falar na falta de apoio popular, levam a que a institucionalização de tal família política tenha que continuar adiada por mais alguns ciclos políticos.