a Sobre o tempo que passa: Rebecca Horn (n. 1944), alemã, universal

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

17.4.05

Rebecca Horn (n. 1944), alemã, universal



Hoje foi dia de Rebecca Horn no CCB, nos últimos minutos da exposição. A força da imagem e da palavra. A haste de metal sobre metal. O chão de areia, passos registados em contrário, espelhos, mercúrio. Ficou assim, dentro da nórdica e sombria baleia, este pedaço de desejo que é dizer que amanhã será o tempo que não veio a ser. Com o desassossego de Pessoa. E, mais do que revolta, este pedaço de memória, este resto de semente navegante. Um tempo que semeio em espera, vencendo as coisas da rotina. Para que o tempo me dê asa, que, por mim dentro, me possa desgrenhar. E muitas paisagens metálicas que me dêem o espaço de um sonho que venceu a sombra.




Depois de longas horas de luta e de labuta, quando as sopesadas palavras já doíam, depois de pernoitar no sítio de refúgio a que chamo casa, senti nos objectos construídos por Rebecca, olhando-os dentro de mim, o que as palavras procuram, quando as mesmas, desvairadas, me dispersavam entre as pertenças que, às vezes, não consigo conjugar. Quando a casa que tenho pode não ser a minha casa. Quando a terra em que vivo pode não ser a minha terra. Porque cheguei antes, muito antes, ou depois, muito depois, com meu ser que é um ser que nunca se repete, a não poder viver o necessário acontecimento que também nunca se repete.



Olhando Rebecca, a oliveira, o pardal, ficou a breve ilusão de me encontrar, de partir deste pedaço para aquela eternidade para onde tendo, sem que me doa este não saber o que amanhã me pode ser. Que venci os restos de um passado enegrecido, quando me proíbiam os sonhos de quem sou, dos tempos todos que passei sem poder até em escritos me dizer, quando tudo o que tinha me não dava ser. Porque meus teres não são as coisas que se compram ou que se investem, as casas, os carros, as loiças, ou os luxos, mas os sítios serenos onde posso guardar meus segredos, os pequenos recantos onde me guardo dos olhares e dos dizeres dos que não podem devassar os meus segredos.

E dóem as metálicas memórias das raízes decepadas, dos livros vasculhados, dos papéis vistos e revistos, das mãos imundas que violaram templos, sacrários, memórias, pedaços repensados de um tempo só meu que me deu mar. E agora e aqui, bem me apetecia poder dizer dos sinais de um tempo por cumprir. Que venha um tempo de sempre, um novo dia, um novo sol, para que seu calor me dê o sempre, a força de enfrentar os restos de sombra onde padeço. Que o dia é cinza e vento.