O D. Sebastião científico foi o melhor aliado de Salazar
Para ser politicamente incorrecto e tentar fugir aos tradicionais ódios de quem sempre fui distante adversário, apetece dizer que graças ao protagonismo de Álvaro Cunhal e do PCP no movimento unitário antisfascista de 1945, os aliados ocidentais, vitoriosos da guerra contra o nazi-fascismo, não favoreceram um movimento visando o afastamento de Salazar no pós-guerra. Basta recordar que nesses tempos, o próprio Mário Soares era um jovem colaborador desta forma portuguesa de servir o estalinismo. Deste modo, foi pela existência do profissionalismo revolucionário de Cunhal que o salazarismo conseguiu perpetuar-se e até receber o privilégio de fundador da OCDE, da NATO e da EFTA.
Até poderemos acrescentar que a queda do Estado Novo só foi admitida depois da emergência da extrema-esquerda, a partir da cisão maoísta de Francisco Martins Rodrigues nos anos sessenta, o tal factor revolucionário imprevisto que o cunhalismo não conseguiu controlar e que constituiu, talvez, a principal alavanca que permitiu a emergência de Mário Soares e de um socialismo democrático, aliado do modelo ocidental de democracia. O tal esquerdismo, dito doença infantil do comunismo, gerando uma pluralidade de albaneses e chinocas em ritmo lusitano, da OCMLP ao MRPP, habilmente impulsionado pela CIA, desmantelou a hieraraquia do centralismo democrático, tão laboriosamente construída pelo ex-camarada Daniel.
O inteligente, sedutor e cruel revolucionário profissional, para utilizarmos os justos adjectivos com que hoje foi brindado por uma sua criatura, a deputada Zita Seabra, agora ao serviço dos laranjas, não conseguiu assim lançar as bases daquilo que chegou a constitucionalizar como construção do socialismo, antes de muitos antigos cunhalistas se ilusionarem com outros construtivismos, como o dos eurocratas, para que todos fôssemos meros cidadãos em construção, peças de um processo histórico, segundo o qual seria um certo caixilho ideológico dito história que construiria o homem. Felizmente, a história acaba por ser uma co-criação de homens livres, onde os indivíduos podem erguer a mesma história, ainda que não saibam que história vão fazendo.
O paradoxo cunhalista está na circunstância de só poder haver colectivismos, como o pêcêpista, quando emergem voluntarismos indidividualistas, como os de Cunhal, o tal revolucionário profissional que, muito organizadamente, através de um vanguardismo hierárquico, dito centralismo democrático, obedece à rigidez do aço, com mão de ferro, tentando quebrar a força normativa dos factos. Afinal, aquilo que Guerra Junqueiro tinha profetizado em plena I República como a inevitável chegada de um D. Sebastião científico, acabou por configurar-se como a foice e o martelo da personificação de Manuel Tiago, que foi tão abstracto que, até pelo desenho, tentou criar um povo que nunca existiu, com a beleza trágica de camponeses e operários que só no delírio ideológico tiveram realidade.
E não é por acaso que o passamento desse actor político ocorreu no pleno momento em que a Avenida da Liberdade lisboeta vivia a emoção das marchas ditas populares do Santo Antoninho, essa tradição inventada pelo salazarismo em 1934, no preciso ano em que também era inaugurada a estátua do marquês de Pombal, já em pleno Estado Novo, com a maçonaria do Grande Oriente Lusitano, na véspera de ser extinta, ainda aparecer numa cerimónia oficial, ao lado de Duarte Pacheco e Linhares de Lima, os últimos representantes da ala republicana do 28 de Maio que Salazar tão habilmente manipulou.
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