O que é comum não é de nenhum...
Depois de longas polémicas filosóficas quanto à distinção entre a social-democracia e o socialismo democrático, verificámos, hoje, em pleno parlamento, que aconteceu nova fábula do ovo de Colombo. Para o cidadão Mendes, o que distinguiria um verdadeiro social-democrata, da esquerda moderna, que, aliás, não é de esquerda, de um autêntico socialista democrático, mesmo o do socialismo na gaveta, tem a ver com a circunstância de, para as cabeças do PS, e da esquerda, ser impossível "mexer no Estado". Neste sentido, o PSD vai apresentar uma proposta de lei que visa "reduzir o tamanho e a dimensão do Estado". Por outras palavras, os pirómanos que incendiaram o défice, assumem-se agora como bombeiros, usando as pérolas de água da retórica reformista, para apagarem esse fogo que, ardendo sem ser ver, resulta precisamente da lógica do Bloco Central que nos enredou em termos mentais.
Quando sociais-democratas e socialistas querem vestir-se de liberais, todos deitam pela porta fora o que vão deixando entrar pela janela, porque o método dito da modernização sempre foi o de não perceberem que há uma linha recta ascensional de concentração do poder que, arrancando com o salazarismo, passou pelo gonçalvismo, pelo soarismo e pelo cavaquismo. Com efeito, se variaram os conteúdos do Estado Novo, da Revolução e da Pós-revolução, manteve-se o mesmo continente e a forma acabou por condicionar a matéria, dado que o método continua a controlar os fins.
Nenhum deles ainda percebeu que o Estado a que chegámos já não é apenas "um" mas "vários" Estados. O velho Estado, herdado do Estado Novo, já não há, porque a maioria dos factores de poder já não são controláveis pela governação de forma hierárquica e nem sequer são nacionais. O Estado que importa instaurar deve ser uma espécie de não-Estado, isto é, ser uma forte estrutura de controlo do cérebro social que actue como núcleo de uma estrutura de rede multidimensional, que tanto penetre na chamada sociedade civil como navegue flexivelmente por entre as ondas e marés da União Europeia e da globalização. Porque, mesmo sem haver constituição europeia, já há um Estado europeu informal, tal como há um ainda mais nebuloso Estado mundial, ao mesmo tempo que, no plano clássico, intra-nacional, emergiram corporativismos, regionalismos e localismos, num jogo de poderes e contrapoderes.
Por mais leis que façam para a redução do tamanho do monstro, por mais ministros da reforma e da modernização do Estado a que dêem posse, por mais constitucionalistas que mobilizem, a maior parte dos adeptos do Estado velho e das respectivas ideologias caducas ainda não compreenderam que importa alterar o corpo do mesmo, queimando as gorduras, calcificando os ossos, agilizando os membros, mas aumentando a intensidade da cabeça, a velocidade dos nervos e a intuição dos afectos. É por isso que, como liberal, quero mais e melhor Estado em certas zonas de defesa da independência nacional, de garantia das liberdades e de realização da justiça, mas sem que isso aumente os aparelhos do monstro.
Ninguém reforma o Estado invocando a loucura neoliberal de liquidação do Estado Social ou clamando por mais prestações sociais, mas mantendo políticas públicas que nos têm conduzido ao défice, nomeadamente as da educação e da saúde. E quem continuar a brincar ao nominalismo das privatizações e estadualizações, nunca compreenderá que a reforma necessária passa por fazermos curtos-circuitos comunitaristas, de não fazer passar a justiça social e a justiça distributiva pelo vértice do erário público, gerido pelos ministros das finanças, mas através de contribuições e prestações geradas no infra-estadual e no supra-estadual. A melhor forma de hoje liberalizarmos é comunitarizarmos, isto é, regressarmos ao lema das nossas aldeias destruídas, segundo o qual "o que é comum não é de nenhum", mas porque é de todos.
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