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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

23.6.05

Há dias de azul e dias de negro. Podemos voltar ao azul. Sempre.

Há dias de azul e dias de negro. Seguem-se dias de pensá-los. E o tempo de estado de graça das governações começa a chegar ao fim do cor-de-rosa, que é cor igual ao cor-de-laranja, duas cores-do-burro-quando-foge, muito dificilmente pintáveis de verde. Por isso, quando se lê na primeira página de um jornal de grande circulação o que se segue:



...somos obrigados a reconhecer que o poder só muda quando o mesmo começar a temer o poder dos sem poder e efectivamente se democratizar. Não para substituir o rei absoluto pelo povo absoluto. Não para dizer que manda o povo em democracia. Que mandam poucos em aristocracia. Ou que manda um só em monarquia. Mas antes para dizermos que, nesta democracia, o dever-ser não é responder ao quem manda, mas ao como se controla o poder de quem manda. E aqui é que o 25 de Abril ainda não se libertou do 28 de Maio. Tal como este nunca saiu do 5 de Outubro. Tal como todos eles não escaparam dos tentáculos leviatânicos, onde o Estado, enquanto alma artificial, sempre disse que era lei o que o príncipe dizia e que o príncipe não estava sujeito à própria lei que fazia.

Só há Estado de Direito, isto é anti-Estado, enquanto "l'État c'est moi", quando:
-as polícias deixarem de receber cunhas para safarem os políticos e os amigos dos políticos das multazinhas;
-as polícias investigarem mesmo tudo quanto merece ser investigado;
-as polícias não brincarem a manifestações anedóticas, ideológicas ou insultuosas para as crenças dos outros.



Há dias de azul e dias de negro. Podem seguir-se dias de viver como pensamos, sem pensarmos muito como os vivemos. Quando pudermos cumprir o que prometemos. Quando voltar a moral, enquanto ciência dos actos do homem como indivíduo livre. Quando voltar a casa bem arrumada, vivendo com aquilo que temos e estando conscientes da circunstância de problemas económicos, como o défice ou a evasão fiscal, só poderem ser resolvidos com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Porque só depois da casa, "oikos" em grego, com a sua "oikos-nomos", ou ciência dos actos do homem enquanto membro da casa, a que damos o nome de economia, só depois da casa é que saímos para a praça pública e fazemos política, que é coisa dos cidadãos, da ciência dos actos do homem enquanto membro da "polis", da "civitas", da "respublica" ou do "Estado".

Quando a política regressa ao nível da casa, os negócios da política voltam ao doméstico e o chefe político tanto passa a "paterfamilias", como a "dominus" (de "domus", isto é, casa em latim), isto é a "dono", ou "oikos despote", em grego. Quando a política não se distingue da moral, pode até chegar a inquisição, santa, católica, apostólica, romana ou salazarenta, quando não comunista, sovietista, trotskista, maoísta ou doutro rebanho colectivista, onde o indivíduo se perde como "indiviso", como ser que nunca se repete e que passa a ser mera consequência do rolo compressor das ideologias, pieguices ou catecismos.



Por outras palavras, não há política, sem que antes haja economia, sem que antes haja moral, mas desde que se respeitem absolutamente essas esferas de complexidade crescente. Pôr a economia a fazer moral é tão pouco liberal como misturar política com religião, alhos com bugalhos, ou ter a ilusão totalitária de pensar que pode haver cidadãos sem indivíduos ou sem trabalhadores. Quem não trabalha não come. Quem não paga impostos não deve poder exercer a cidadania. E todos devemos ser contribuintes morais. Há dias de azul e dias de negro. Podemos voltar ao azul. Sempre.