a Sobre o tempo que passa: "Não faz sentido persistir numa gravidez de um feto morto"

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

22.6.05

"Não faz sentido persistir numa gravidez de um feto morto"



Era o prazer da sombra, num jardim em plena cidade, a música de passarinhos vencendo os ruídos dos carros que passavam, as conversas que se iam ouvindo na mesa do lado e o esquecimento dos telemóveis, para que estes não interrompessem o necessário silêncio. Era, sobretudo, uma solidão que se pensava, um chilreio sobressaindo desse mosaico de verde sujo, vestido de sombras em dia de Verão, enquanto a caneta, passeando, me ia escrevendo no papel. E atrás de mim, perdida no tempo, uma conversa que recortei de um qualquer pedaço de blogosfera que, infelizmente, ninguém cita:

-Magoa-me talvez menos o facto de não se ter aprovado o orçamento comunitário do que a incapacidade dos 25 em adoptar uma declaração comum em relação ao Tratado constitucional. Não faz sentido persistir numa gravidez de um feto morto. Adiar só aumenta o martírio de um parto que terá sempre que ser feito.

-Há dias assim...em que tudo parece ser a brincar. Buracos no tempo em que nada acontece porque nada deve acontecer. Não existe explicação nem voluntarismo para essa inércia. O devir servirá de aconchego ao desespero de nada ter acontecido e perceberemos então que não era a hora certa.

-A Europa (o espaço sem fronteiras, o Euro, os fundos, as directivas, a vontade de fazer em comum…) não morreu. Fugiu, rasgando o céu nublado de Bruxelas, montada no seu touro branco.

-Seria tão bom que em vez de carpideiras, adventistas do caos, sábios do restelo e analistas do brique a braque, tivessemos pessoas que pensassem, estudassem, duvidassem, trabalhassem, exigissem mais de si próprios e menos dos outros. Talvez assim não tivesse havido esta Constituição Europeia mas outra, nem tivesse havido um referendo, nem tanto esforço tivesse sido feito em vão...


Litografia de Fernando Alba Aldave