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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

28.6.05

Quando o lume da profecia se esvai em números, trapalhadas e embustes...



Tomo nota do alerta do antigo ministro das finanças de Mário Soares: «Se se mantiverem ao ritmo actual o crescimento económico e o crescimento da despesa, o Estado vai chegar a 2015 sem dinheiro para cobrir despesas como os subsídios de desemprego ou os salários de funcionários públicos». Reparo que ainda faltam dez anos. Recordo como as previsões de médio e longo prazos apenas servem para que os decisores possam criar condições para que as péssimas profecias se não concretizem. Respeito imenso a coragem de Medina Carreira, mas tenho esperança que o lado mau destes avisos seja tão pouco realista quanto o tem sido o lado sonhador dos planeamentismos, ao estilo das conversas de João Salgueiro quando era sub-secretário de Estado do planeamento de Marcello Caetano, anunciando que, no século XXI, atingiríamos a média de qualidade de vida da Europa Ocidental. Já cá estamos e até já nem somos aquilo que éramos.



Prefiro ser bem mais pessimista e questionar se, dentro de uma década, ainda seremos uma comunidade política assente na confiança pública e através de um aparelho de Estado autodeterminado. Porque a questão tem pouco a ver com o crescimento da função pública e com o o aumento das despesas da Caixa Geral de Aposentações. Aliás, quem liquidou, em poucos meses, um Império Colonial e, depois, nacionalizou, num só dia, quase todo o comando económico já respondeu a desafios bem maiores e conseguiu resistir. Apenas noto que, nesses momentos de metamorfose comunitária e de reidentificação nacional, os especialistas em numerologia não eram profetas. Transformavam por decreto milhares e milhares de empregados de organismos corporativos e de matadouros em funcionários públicos e incluíam neste grande asilo dos erros políticos os milhares de retornados, para agora criticarem o crescimento do Estado.



A crise do aparelho engordado foi o preço que tivemos de pagar para a liquidação do império colonial, para a transição para a democracia e para outras loisas, nomeadamente para não termos guerras civis. Quem se ri, no fim do processo, e ainda é capaz de discursar sobre a nostalgia prequiana é gente que engordou mais do que proporcialmente face ao empobrecimento colectivo das futuras gerações, isto é, os sindicalistas da banca e dos seguros que aproveitaram os meandros da pós-revolução, ou os capitães feitos coronéis pançudos, que Fernando Nogueira tirou dos quartéis. Numerologia por numerologia, prefiro, mais uma vez, reconhecer que Cristo também não percebia nada de finanças, ao contrário de António de Oliveira Salazar que, depois de endireitar as contas públicas com o gesso da austeridade, nos obrigou andar de perna entalada já depois da mesma estar curada, numa quarentena forçada que também durou quarenta anos. Os orçamentos rectificativos são sempre uma trapalhada a que outros chamam embuste.