A esquizofrénica procura do presidente-rei e a (falta de) ética republicana
Soares e Cavaco são o regresso a um mitificado passado, a invocação de dois dos principais situacionismos que marcaram a nossa pós-revolução. A procura da segurança sistémica, ao exigir este conforto pela protecção do presente, recorrendo-se aos pais do modelo político que temos, constitui uma ilusória droga que revela tanto a impotência das presentes gerações como a falta de criatividade dos filhos do soarismo e do cavaquismo, confirmando a estagnação em que o regime se enreda. E tudo poderá explodir se não ganharmos consciência da circunstância de poder chegar, de um momento para o outro, o Marcello Caetano deste regime envelhecido.
Aliás, ninguém de bom senso acredita que o actual PSD possa assumir-e como alternativa credível ao presente governo. Da mesma forma, também ninguém vislumbra a hipótese do desencadear de uma crise política que crie um ambiente de pré-golpe de Estado, coisa que é, de facto, tecnicamente impossível. O comando político e social do país já não cabe numa "Chaimite", dado que atingimos níveis de pluralismo e de sociedade aberta que nos tornam imunes ao golpe, apesar de continuarmos vulneráveis à putrefacção.
As próprias análises políticas que acompanham os cenários presidenciáveis, inventariando-se os prós e contras dos perfis intervencionistas dos principais candidatos, reflectem o conformismo comentarista. Até se prendeu o imaginador-mor, Marcelo Rebelo de Sousa, o antigo criador de factos políticos, na gaiola do telejornal da RTP.
Com efeito, o intervencionismo do velho macro-economista não surtiria efeito nas presentes circunstâncias, porque o Palácio de Belém não pode transformar-se num super-ministério das finanças. Da mesma maneira, soaria a ridículo que o mesmo local presidencial pudesse volver-se em Palácio das Necessidades, no caso de vencer o antigo caixeiro-viajante da república, até porque já se foi o estrondo que marcou o fim da guerra fria e morreu Álvaro Cunhal.
Ninguém se banha duas vezes nas águas do mesmo rio e um qualquer velho não pode voltar a ser novo, mesmo que recentes químicos nos dêem a ilusão alquímica da descoberta do elixir da vida eterna. Por isso, bem podemos estar a assistir a delírios típicos das noites de Verão, pelo que, depois das reflexões de Agosto, talvez se chegue à "rentrée" de forma mais friorenta.
Todos sabem que o necessário "indisciplinador colectivo" capaz de afastar a presente estagnação não virá de dentro para fora. Porque os factores nacionais de poder, que a governação pode gerir e mobilizar hierarquicamente, já não são suficientes para um intervencionismo capaz de debelar a crise que nos ameaça.
Já não somos um país independente à maneira salazarista. E a independência que nos resta se resume à sucessiva gestão de dependências a que livremente nos fomos prendendo, tanto a nível da transferência de soberania da integração europeia, como da interdependência da globalização.
O sonhado intervencionismo presidencial não passa de uma ilusão. É feito de imagens assentes num passado que já não há, quando outras eram as circunstâncias. Daí que o regresso de personalidades históricas, ligadas ao momento genético do presente regime, apenas conforme a presente esquizofrenia colectiva. E que possa repetir-se a tal estúpida personalização do poder que nos faça depender de uma constipação mal tratada.
Tanto são graves soarismos ou cavaquismos sem Soares e sem Cavaco, respectivamente, como Soares ou Cavaco, feito um deles presidente, também sem soaristas ou cavaquistas. O aqui e agora é diferente no "tempo" de interregno em que estamos embrenhados e no "espaço" das presentes circunstâncias geopolíticas que levaram os principais presidenciáveis a ficarem assinaladas como figuras notáveis da história política política portuguesa.
Transformar as eleições presidenciais num passeio que a pátria portuguesa provindencia para o Olimpo do agradecimento dos homens comuns, revela uma falha dos nossos constituintes que deveriam ter previsto a hipótese de um colégio presidencial de muitos "honoris causa". O que evitaria o perigo do estabelecimento de um regime monárquico à maneira vaticana, com o eleito a receber mandato vitalício de presidente-rei. Assim se evitariam os desperdícios de tantas pré-campanhas, campanhas e actos eleitorais, bem como algumas fraudes face ao sentido da proclamada ética republicana.
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