Leituras de férias IV. Dos poetas que não sinto ao elogio da frustração
Ouvi os sábios todos discutir
Podia a todos refutar a rir.
Mas preferi, bebendo na ampla sombra,
Indefinidamente só ouvir
(Fernando Pessoa, em 3 de Outubro de 1935)
De nada vale ler livros de poemas que não sinto, não porque sejam poemas sem sentido, mas porque a estética que os embebe e reproduz nos afasta de senti-los em segredo.
Através do conhecer-me inteiramente conheço inteiramente a humanidade toda
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)
De nada vale tentar ouvir uma qualquer música que me leve ao sonho que me apetece, quando ela foi composta para outros sonhos.
Quem sabe escrever é o que sabe ver os seus sonhos nitidamente
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)
Vale mais sentir o sol chegar, sorver o fogo deste dia que vai nascendo.
Sonho-me a mim próprio e de mim escolho o que é sonhável, compondo-me e recompomdo-me de todas as maneiras até estar perante o que exijo do que sou e não sou
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)
Depois de morto, um qualquer autor que tenha recebido a consagração como génio, corre o risco de lhe vasculharem a papelada, misturando o publicável com os destroços sobre os quais foi esboçando a respectiva obra. A vantagem de quem não é dessa estirpe consiste em não ficar com arcas cheias de papéis por escrever, de todos os dias poder dispersar-se e ficar sempre por cumprir.
A realidade verdadeira de um objecto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)
Quase todos continuam a admirar os grandes teóricos da frustração, pelo que o único espaço de sonho que nos resta fica afinal nos que conseguem não ceder às delícias do situacionismo, aos meandros dos pequenos poderes e a esta tradicional eficácia dos que, graças ao Orçamento de Estado, conseguem comandar contínuos e outros empregados em certos postos de vencimento, isto é, os que vivem a cumprir os despachos de um qualquer mandador que os acasos da burocracia transformaram em comandantes operacionais do cinzentismo, típico dos aparelhos de poder sem sentido de missão.
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