a Sobre o tempo que passa: A saudade de outras viagens com demora

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

23.9.05

A saudade de outras viagens com demora





Nesta rapidez da viagem, a saudade de outras viagens com demora. Que cansam jornadas longas demais para tão curto tempo. E apetecem viagens que sejam devagar, passo a passo, neste deslizar dos dias que vão absorvendo a mudança do corpo, a adaptação da alma. Que correr é desprezar o espaço e não permitir a procura do que nos falta e para onde vamos. Correr assim é não saber mudar. É sermos sempre os mesmos em qualquer lugar.

Aquilo que julgamos concreto nesta lufa-lufa de quem não sabe converter-se ao espírito do lugar não passa de mais uma desenraizada abstracção, carregada de preconceitos, típica daquele a quem apenas é dado ver aquilo que seja confirmação da sua própria previsão. Logo, circum-navegar deixa de ser descobrir e, sobretudo, redescobrir, procurando nos outros aquilo que se oculta dentro de nós.



Importa viajar sem a ligeireza do turista. Daquele que tudo pensa captar porque apenas quer viajar para fazer suas as prévias sensações já registadas por escrevinhadores de viagens. E apetece ser parcela de outra viagem que seja parte de uma viagem, onde apeteça cumprir livremente o meu destino. Para que o tempo possa circular em mim e fazer-me nómada, continuando na descoberta do sentido íntimo dos lugares. O que talvez seja não ter mesmo nenhum lugar.

Porque quando a viagem nos faz peregrinos, vagabundos que são romeiros de um sentido para o mundo, cada um dos nossos passos é como se fosse uma conversão. E todos os que têm a força para cumprir sua missão não podem mesmo ter um qualquer lugar que os limite. São de todo o mundo.



E assim me sonho, quando vou escrevendo, de um jacto, sem saber o que comanda as minhas mãos, neste pontuar linhas sobre o papel, procurando desafiar o sem espaço do mistério.

O tempo da descoberta nunca nos custa. Mesmo num sítio desconhecido, fazemos sempre bolhas nos pés, no primeiro dia da estadia, nessa corrida para vencer o desconhecido, percorrendo, em círculos concêntricos, o espaço que tem por núcleo o ponto de encontro onde brevemente estacionamos e pensamos nosso.

Os minutos demoram e doem quando se espera uma partida, marcada pelo prazer da viagem. Para que a espera passe depressa e se volva em esperança, mergulhando na noite à procura de sonho. Quando apetece a viagem de despojar meu ser dos restos de quem não sou.

E noite dentro, a viagem se desdobra por mim dentro. Leio. Tento esquecer. E ingresso, de vez em quando, no tempo que vou esquecendo. Regresso. E, nesse poiso de sustento, imerso, na imanência que é transcendência, no devagar regresso a quem na verdade sou, é no profundo silêncio que me durmo. E sonho.