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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

23.10.05

Ir à Madeira e não falar de Jardim...



Ir à Madeira e não falar de Jardim, denunciando o défice democrático, o regionalismo e o caciquismo é a mesma coisa do que ir a Roma e não ver o papa, ou visitar São Pedro de Sintra em dia de feira e não tomar café com o senhor duque de Bragança. Por isso, depois de ter, muito aristotelicamente, viajado em torno de ideias neo-clássicas, tão aristotélicas e tomistas quanto kantianas, e tão cristãs quanto para-judaicas e para-maçónicas, entre Maritain, Hayek e Leo Strauss, junto de muitas caras de água benta e outras tantas notas pé-de-página da doutrina vaticana, não deixei de observar aquela lusitaníssima ilha, onde quase todas as conversas vão dar a Alberto João que, segundo as palavras da secretária regional Estudante, que encerrou o congresso, tem a qualidade de adivinhar o que se vai dizer e tomar medidas antes das propostas críticas saírem.



Para mim, Jardim constitui, com o seu perfil de bobo-mor do regime, o máximo do situacionismo vigente em Portugal, não apenas por ser o político partidário com mais tempo de permanência sob os holofotes do poder, como, sobretudo, por ter sido elevado pela comunicação social capitaleira à condição de monopolizador dos discursos do contrapoder. Por outras palavras, de acordo com as regras do jogo vigentes, Jardim é aquele que ciclicamente é usado pelo reino da mediacracia para ser elevado à categoria de expoente máximo do oposicionismo, para que os sistémicos possam, muito subliminarmente, ditar que todos os discursos contra o sistema têm que ser necessariamente populistas, semi-rascas e adeptos de uma personalização do poder geradora de clientelismo, partidocracia e favoritismo.



De certa maneira, aconteceu a Jardim o que está a suceder ao radicalismo esquerdista e a Louçã, dado que também estes tendem a cair na versão populista do desespero na caça ao voto, um pouco à imagem e semelhança dos pecados que marcaram outros epifenómenos como o eanismo moralista do PRD, o monteirismo soberanista ou a revolta das pretensas classes médias dos porteiros.



Todos os situacionismos necessitam de sistémicas válvulas de escape, onde a verbosidade finja que é possível mudar, para que tudo continue na mesma. E até lhes são mais convenientes os radicalismos que sejam rigorosamente controlados pela mesa do orçamento, ou pelo subsídio de um banqueiro. Porque tanto Alberto João como uma das suas imitações em dó menor, acabarão sempre por apoiar Cavaco, da mesma maneira como o político do ultra-regionalismo fez campanha contra a regionalização do “contenenete”. Qualquer populista faz do faro oportunista uma alteração anormal das circunstâncias e de acordo com a velha máxima do “sic rebus, sic stantibus”, tanto faz campanha eleitoral em Leiria defendendo a construção do aeroporto da Ota, como, depois, se assume como líder das subscrições públicas contra o dito aeroporto.

Por outras palavras, como dizem certos capitaleiros, se Alberto João não existisse, teria que ser inventado. Vale-me que não sou madeirense nem habito na região, porque se assim fosse, eu próprio corria o risco de o apoiar eleitoralmente, dada a respectiva eficácia sindicalista contra o Terreiro do Paço e os serviços prestados como cacique, como gestor dessas migalhas de poder estadual. Que, olhando o mar deste presépio funchalense, sinto no cais de pedra a que atraquei, a saudade de outras pausas de viagem e de outros intervalos de paz.



Apenas recordo uma velha história que me foi contada por um dos fundadores do CDS que veio aqui para o Funchal, nos primeiros dias de Abril, para implantar o partido, mas depressa foi chamado pelo senhor bispo de então que o aconselhou a regressar depressa a Lisboa, a fim de não dividir o rebanho. Alberto João tornou-se assim num eficaz líder daquilo que no pós-guerra tinha o nome de democracia-cristã, num estilo de Dom Camilo laico, e que então se acolheu sob o nome sincrético de social-democracia, o carimbo conveniente para uma encruzilhada que tinha de ser simultaneamente anti-liberal e anti-comunista. O rebanho e o líder cumpririam a respectiva função, para gáudio de rechonchudos, discursos-bissectrizes e engraxamentos celestiais e com muitos benefícios para o bom povo.