a Sobre o tempo que passa: Nesta semana de intervalo, antes de novo ano chegar

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

28.12.05

Nesta semana de intervalo, antes de novo ano chegar



Nesta semana de intervalo, antes de novo ano chegar, é tempo de volver sobre mim mesmo, peregrinando as palavras todas que me dão procura e aproveitando estes dias de silêncio onde me deito, à beira de quem sou e de quem sonho. É assim que me vou perdendo e que nos outros me difundo, fazendo balanço dos dias todos donde venho, para onde vou. Que quando me penso e deles faço memória, dou o nome de flores a signos antigos que me marcaram.

E às vezes vou escrevendo o poema que me acontece, mas que não é o poema que me apetece. Quando o tempo devia ser um rosto de vento que me desse esse sinal de vento para navegar, um inteiro dia que semeasse o sonho dum lugar de exílio que me desse a coragem da paz. E a caneta me sustenta, essa âncora da memória que me dá a própria história, nas muitas noites que me dão a busca, onde quem sou se volve em sonho.



Não, não sou alheamento desses pedaços de quem sou, dessa casa de pedras desencontradas, numa rua de betão sem calçada, dessas placas de azulejo que me dão nome e onde havia uma estrada que atravessava um rio e uma praia que a ventania situava, com imensa gente sentada na esplanada de cimento armado, diante de uma barra que nos dava partida. Porque basta recordar um qualquer pedaço de mar passado, para se guardar o silêncio da procura.

E sempre a terna nostalgia das muitas cordas que o barco sonhado não trouxeram. Areias de outrora que não passaram na ampulheta da realidade. E escamas de sal coladas no corpo. E rios que não regressaram a sua nascente. E pedaços de azul que semeei dentro de mim. E veias de um sonho onde persigo esse projecto por cumprir que, como asa perdida, continua boiando pela respiração da vida. Há sempre um resto de silêncio de que sou procura.



É o velho ano que se vai. Um ano onde rimei comigo, onde rimei contigo, onde fui vida, nessa pura alegria de uma razão complexa, inteira, onde o paradoxo voltou a ser meu ser, para poder olhar de frente o que virá depois do não-ser. Porque houve um sinal de horizonte que atravessei, sem medo de sentir o risco de viver, essa plenitude de estar e ser, de apetecer viver para sempre, guardando o silêncio de não querer vencer, sabendo que conseguiria vencer. O mar pode conter meu verso e o tempo alumiar-me.