a Sobre o tempo que passa: Dias de boas e más memórias. De Wilson a Patocka.

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

9.1.06

Dias de boas e más memórias. De Wilson a Patocka.

Volto ao dia a dia, reparando que, hoje, parcas são as marcas para relembrar. Porque iniciou-se em 1913 o governo de Afonso Costa e, em 1981, o de Pinto Balsemão, de decadência da AD. Porque em 1975 foi fundada a Frente Socialista Popular de Manuel Serra e, em 1933, António Ferro lançou o livro propagandista "Salazar, o Homem e a sua Obra", naquilo que foi então dito como o Salazar passado a Ferro.

Nem sequer reparo que estamos no segundo dia dessa coisa que antes de o ser já o era, a campanha eleitoral para a presidência, porque vale mais lembrar na data de ontem, em 1902, se suicidou Joaquim Mouzinho de Albuquerque, tal como anteontem, em 1355, foi degolada Inês de Castro e morreu D. Carlota Joaquina. Prefiro duas comemorações: uma no dia 7 , de 1977, quando foi emitida a Carta 77, na Checoslováquia, e ontem, dia 8, no ano de 1918, quando o presidente norte-americano, Wilson, lançou os célebres Catorze Pontos.



Com efeito, Thomas Woodrow Wilson (1856-1924), o democrata presidente norte-americano desde 1913, queria, de forma doutrinária idealista, acabar com o velho hábito das diplomacias de guerra que, segundo as suas próprias palavras, fazia dos povos mercadorias de troca ou peões do tabuleiro de xadrez. Já na campanha presidencial de 1912 se opusera à política intervencionista dos anteriores presidentes republicanos, desde o big stick de Theodore Roosevelt à dollar diplomacy de William Howard Taft, voltou a vencer as eleições de 1916, em nome da não intervenção norte-americana na Grande Guerra. Contudo, logo em 2 de Abril de 1917, já declara guerra à Alemanha, proclamando a necessidade do mundo ser safe for democracy. Nestes termos, endereçou uma mensagem pessoal às duas Câmaras do Congresso em 8 de Janeiro de 1918, os famosos Catorze Pontos:

1º Tratados de paz após negociações à luz do dia, a fim de acabar com a diplomacia secreta;


2º Livre navegação em todos os oceanos, em tempo de paz e em tempo de guerra;

3ºTanto quanto possível, supressão de todas as barreiras alfandegárias (isto é, o livre acesso das mercadorias americanas aos mercados até então protegidos);

4º Desarmamento, sempre que possível, sem ameaçar a ordem interna;

5ºResolução dos problemas coloniais, respeitando o bem-estar dos colonizados tanto como as exigências dos colonizadores;

6ºEvacuação dos territórios russos ocupados, direito das populações a disporem de si próprias, com a assistência de outras nações;

7ºEvacuação e restauração da Bélgica;

8ºEvacuação e devolução dos territórios da Alsácia-Lorena à França;

9ºRectificação das fronteiras italianas numa base nacionalista;

10ºAutonomia dos povo que compõem o Império Austro-Húngaro;

11ºEvacuação e restauração da Roménia, da Sérvia e do Montenegro; livre acesso ao mar pela Sérvia; revisão das fronteiras nos Balcãs para se satisfazer as aspirações nacionais históricas;

12ºAutonomia para os povos não turcos do Império Otomano; independência da Turquia; garantias para a livre passagem do Bósforo e pelos Dardanelos;

13ºFundação de um Estado polaco independente, com livre acesso ao mar;

14ºCriação de uma Sociedade das Nações para assegurar a independência política e a integridade dos Estados grandes e pequenos.



Sobre a Carta 77, uma das principais bases para a implosão da URSS, importa apenas recordar o seu primeiro porta-voz, Jan Patocka (1907-1977), o filósofo checoslovaco, inspirador de Vaclav Havel, que assumindo-se contra o slogan do antes vermelhos que mortos, de certo pacificimo capitulacionista do Ocidente, proclamou que uma ideia pela qual não se está disposto a dar a vida, é uma ideia pela qual não vale a pena lutar.



Salientou também que o segredo da nossa existência europeia foi sempre a falta de uma qualquer certeza quanto ao sentido da história. Porque sempre reagimos, em nome da liberdade, contra os que pensaram poder comandar o sentido da história, por suporem deter o segredo do bem e do mal e que, com inquisições e juntas de providência literárias, trataram de organizar o index ou o compêndio histórico, esse exacto contrário da tolerância e do relativismo.