a Sobre o tempo que passa: Não há rapazes maus...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

3.1.06

Não há rapazes maus...



Eis-me de regresso, neste terceiro dia do ano de 2006, onde prometo continuar a bloguear sem bloqueios, mas com alguma dificuldade na pesca de novas nas redes que nos dão a hiper-informação, porque não apetece comentar tanto as novas contratações de futebolistas como os últimos discursos do presidente Sampaio, sempre preocupado com a administração da justiça e agora com a intervenção da Iberdrola na EDP, mas sem nada dizer das relações da Prisa com o grupo da TVI. Estou mais preocupado com o corte de fornecimento de gás natural da Rússia à Ucrânia e com a revelação de documentos sobre a vida real de Winston Churchill, onde se confirma que até o primeiro-ministro britânico do "sangue, suor e lágrimas" manteve aquele tradicional regime da Razão de Estado, do tem razão quem vence, segundo o qual os altos fins da Humanidade, da Nação ou da Potência justificam meios que passam por atentados contra os direitos do homem, com algumas infracções que seriam passíveis de uma condenação do actual Tribunal Internacional Penal.



Por outras palavras, depois de há muito sabermos que Churchill é o autor da ordem que liquidou a guerrilha anticomunista e antinazi sérvia, levando ao poder o comunista Tito, e da que promoveu o assassinato de Benito Mussolini, reparamos agora que também admitiu a condenação à morte de Adolf Hitler e até que Gandhi fosse deixado morrer, no caso de persistir em greves de fome. Isto é, o velho British Empire, que já inventara os campos de concentração na África do Sul e que fora o paradigma do colonialismo, manteve-se incólume naqueles pés de barro que promoveram, contra Portugal, o Ultimatum de 1890 e que nos levou à revolta dos "heróis do mar...contra os bretões, marchar, marchar!".



Nada que nos espante. Até porque foi o mesmo Churchill que permitiu a continuação de Salazar no poder depois de 1945. Ele até era o legítimo herdeiro daquele mesmo governo monárquico britânico que admitiu o fim da monarquia em Portugal. Como antes, bem imperial, promovera a liquidação do império português, fomentando a independência do Brasil. Ou como depois, bem representativo e liberal, proibiu que D. João VI instaurasse uma carta representativa em Lisboa, para não se irritarem os espanhóis absolutistas.



O conceito pragmático de política externa, em nome da soberania do "my country, right or wrong", sempre foi regra, mesmo com o flagrante desrespeito dos princípios sagradaos, usados no plano doméstico. Assim se demonstra o eterno conflito entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade, para utilizarmos conceitos weberianos. Assim se mantém a mania de certas elites que se transformam em classes políticas gestoras da governança, segundo as quais, mesmo em democracia formal, podem manter-se aquelas práticas absolutistas de se fazerem leis que dispensam os governantes de a elas estrem sujeitos e de se emitirem ordens sem o formalismo da lei para que o Estado possa ser arbitrário em nome de abstractos interesses nacionais. E tudo justificado pelas teorias políticas do realismo e do neo-realismo que chamam a Maquiavel o fundador da ciência política.



Esse modelo ainda marcou os grandes combates e as pequenas guerras por procuração da chamada guerra fria, incluindo aqueles efeitos indirectos que se fizeram sentir entre nós, quando entraram em choque delegados da CIA e agentes do KGB, coisas que ainda marcam algumas clandestinas memórias lusitanas. Nestes domínios, os pactos de ocultação de memórias e uma abundante literatura de justificação ainda fazem da nossa classe política, instalada no habitual devorismo pós-revolucionário, um conjunto de vacas sagradas, onde, parafraseando o Padre Américo, "não há rapazes maus".