Cícero, o inventor do conceito de povo, nasceu há dois mil e cem anos...
Há dois mil e cem anos, neste mesmo dia 3 de Janeiro, nasceu Marco Túlio Cícero que duraria até 43 a. C. . Originário de uma família da classe média, apesar de não ser patrício nem plebeu, pôde seguir todo um brilhante cursus honorum no âmbito das magistraturas republicanas. Com vinte e cinco anos de política activa, aparece em 63 a. C. como cônsul a derrotar a conjura de Catilina, obtendo então o título de pater patriae. Assume, então, a liderança do terceiro partido, dos homens de negócios, distante dos populares, liderados por Catilina, e dos nobiles, propondo uma terceira via, a da concordia ordinum, a aliança da classe média com os nobiles moderados.
Já depois do assassinato de Júlio César em 44 a. C., assume a chefia do partido senatorial que advogava o regresso ao pluralismo e às liberdades republicanas, mas vai ser derrotado na sequência do advento do segundo triunvirato, onde o seu aliado, Octávio, não consegue impedir o respectivo assassinato, às ordens de Marco António e de Fúlvia. Este manda até atravessar-lhe a língua com um estilete.
O Jovem Cícero, quadro de Vincenzo Foppa, de 1464
Entre as suas obras políticas, destacam-se De Republica, escrita entre 54 a. C. e 51 a. C, e De Legibus, trabalho que deixou incompleto e que começou em 52 a. C. Estas duas obras que retomam, respectivamente, Politeia e Nomoi de Platão, se não primam pela originalidade, demonstram como o republicanismo romano tentou retomar as sementes lançadas pelos gregos. Aliás, o próprio Cícero recebeu a sua formação na Grécia, inserindo-se como discípulo da primeira fase da escola estóica de Zenão e como herdeiro das concepções de Políbio (201-120 a. C. ), servindo de ponte para o posterior estoicismo romano de Séneca, Epicteto e Marco Aurélio.
São estas bases estóicas que o levam a conceber a política como um reflexo da ordem cósmica e a res publica, como uma espécie de participação do homem na cadeia universal. A história política é, assim, perspectivada como um encadeamento de ciclos onde as mudanças podem ser regressos, numa espécie de anaciclose. O estoicismo também o faz ultrapassar um certo etnocentrismo dos escritores atenienses, abrindo-se tanto para a humanitas como para o próprio mundo, nomeadamente quando faz a defesa do omnium gentium consensus. Se, em Platão e Aristóteles ainda permanece aquilo que alguns qualificam como uma racionalização da natureza, já em Cícero emerge uma espécie de naturalização da razão. Este republicanismo estóico, onde também se defende uma moralização da política, vai ser, depois, desenvolvido pelos autores cristãos que também utilizam algumas das pistas de reflexão semeadas por Cícero.
Uma secção de De Republica, o sonho de Cipião, depois de ser antologiada por Lactâncio, vai ser utilizada por Santo Agostinho que, assim, lança alguns dos conceitos deste cidadão romano em pleno debate medieval. Refira-se, contudo, que as restantes partes de tal obra continuaram desconhecidas até à descoberta de um palimpsesto da biblioteca do Vaticano, em 1822.
Com ele dá-se a emergência do conceito de povo (populus), entendido, não como uma multidão unida de qualquer maneira (coetus multitudinis quoque modo congregatus), mas antes como uma multidão unida pelo consenso do direito e pela utilidade comum (coetus multitudinis juris consensus et utilitatis communione sociatus). Porque, para haver res publica, são necessárias três condições: uma multitudo (um número razoável de pessoas), uma communio (uma comunidade de interesses e de fins, aquilo que Santo Agostinho vai qualificar como as coisas que se amam e que, mais recentemente, pode dizer-se das coisas pelas quais se está disposto a dar a vida) e um juris consensus.
Assim se introduz o direito na noção de polis, numa antecipação daquilo que é hoje o nosso Estado de Direito. Só que não se invoca primordialmente o direito positivo, mas, antes, a lei inscrita no coração dos homens, que manda dar a cada um aquilo que lhe pertence. É que para Cícero, o direito não resulta do arbitrio, mas é dado pela natureza: naturis juris ab hominibus repetenda est natura. Coloca assim, em primeiro lugar, um direito natural, estabelecido por uma razão natural, a razão que está na natureza das coisas, o tal que semper bonum et aequum est.
Abaixo desse direito superior, surgiria um jus gentium, um direito já positivo, mas ainda superior, que, como reflexo imediato da lei natural, teria de ser comum a todos os povos.
Em terceiro lugar é que surgiria o jus civile, o direito positivo aplicado exclusivamente aos cidadãos, a lei particular de uma determinada comunidade. Tal como os estóicos, vai pois defender a existência de uma lei eterna, de um justo natural, imutável e necessário, expressão da razão universal, que se manifestaria na consciência do homem.
Conforme pode ler-se em De Republica, a lei da natureza é uma lei verdadeira, a recta razão conforme a natureza, universal, inimitável, eterna, onde as coisas convidam ao dever, onde as proibições afastam do mal. Neste sentido, não é legítimo alterá la, derrogá la ou repeli-la. Nem provavelmente poderemos ser isentos dessa lei, seja pelo Senado ou pelo Povo; nem arranjar um outro padrão para a explicar ou interpretar. Não pode haver uma lei para Roma e outra para Atenas; o que se afirma hoje tem de ser respeitado amanhã; é uma lei eterna e imutável para os povos de todas as eras; como se fosse dona e senhora, a única deusa, autora de si mesma, promulgadora e compulsória. Quem não partilha este sentimento foge a si próprio e à natureza como um homem desprezado.
Noutro lugar, na inacabada obra De Legibus, considera que a lei nem é imaginada pelo génio de um homem nem estabelecida por qualquer decreto popular, mas um determinado princípio eterno que governa todo o universo, dirigindo sabiamente o que está certo e proibindo o que está errado. Por outro lado, Cícero quando proclama que coisa pública tem de ser coisa do povo corrige alguns dos excessos totalistas da anterior noção de polis, negando que o todo esteja antes das partes. É, aliás, a partir desta perspectiva quase societária de povo que emerge a abstracção da res publica, a quem se atribui o fim da justiça.
Uma república que constituiria uma harmonia entre a liberdade, a autoridade e o poder, onde a libertas estaria na participação directa do povo na decisão política, a auctoritas estaria no órgão que conserva a memória da fundação da cidade e detém o poder legislativo, o senado, e a potestas, no poder executivo dos magistrados. Para ele, se numa sociedade não se repartem equitativamente os direitos, os cargos e as obrigações, de tal maneira que os magistrados tenham bastante poder, os grandes bastante autoridade e o povo bastante liberdade, não pode esperar-se permanência na ordem estabelecida. Contudo, a libertas do povo atingia as culminâncias de majestas, um poder de plenitude, de dignidade. De qualquer maneira, considera que a república é verdadeiramente coisa do povo quando está governada equitativa e sabiamente por um rei, por alguns cidadãos ou pelo próprio povo.
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