a Sobre o tempo que passa: No dia da morte de António Sardinha

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

10.1.06

No dia da morte de António Sardinha



Hoje, há algumas marcas do tempo a assinalar. Poderia dizer da publicação do manifesto Common Sense de Thomas Paine, de 1776, ou do nascimento de Lord Acton (1834), prefiro escolher a fundação do Partido Socialista e a morte de António Sardinha (1888-1925). Diria deste último, enciclopediacamente, que foi um ensaísta português, fundador do Integralismo Lusitano. Acrescentaria que também pode ser qualificado como o insigne vulgarizador do tradicionalismo. Nada diria do meu António Sardinha que tanto me influenciou, quando silenciosamente o li aos dezasseis anos e fiquei para sempre sardinhista, mesmo quando, depois, dele fui discordando em acordo.


Sardinha, marcado pela origem republicana e formado no positivismo de Comte, quis colocar-se naquilo que designou como o campo da ciência objectiva, assumindo-se contra o romantismo revolucionário. Considerou que "pela federação das nossas confrarias agrícolas Portugal se constituiu". Salientou que as causas da crise espiritual do Ocidente derivam do chamado renascimento do direito romano, onde o "absolutismo dos reis entra a preverter a noção cristã de autoridade". Esse vício teria sido agravado pela Renascença "com a sua ideia naturalista do Poder e o seu centralismo excessivo, mesmo despótico" e com ela, Lutero que "quebra a unidade moral da Europa".


Acontece que, na Península Ibérica, "o humanismo pretensioso da Renascença se depura e deixando de ser, como era para os gafados italianos, um fim, um ideal de vida, volve se com os Colégios da Companhia (de Jesus) acentuadamente, um meio de educação valiosíssimo, um valioso agente de formação mental, de que o Colégio das Artes em Coimbra nos fornece um exemplo convincente". Depois, com a derrota da Invencível Armada, deu se "o cisma das nações e o advento das éticas do norte com o seu natural triunfo em Vestfália". Finalmente, o absolutismo vai triunfar sem reservas no século XVIII, "destruindo todos os organismos intermédios" e deixando "apenas o Estado na presença do indívíduo, despojado já da rede miúda das associações domésticas e económicas".

Para Sardinha, "o Estado Absolutista do século XVIII antecede logicamente o Estado Metafísico e todo poderoso das modernas democracias. Esse Estado é o Estado napoleónico baseado não na noção histórica da autoridade derivada da Família, da Comuna e das Corporações, mas no simples conceito materialista da força e do domínio". A seguir veio o idealismo alemão:"nos seus vícios estruturais o germanismo, para evitar o vácuo, encaminha nos para o absoluto. Donde a quase divinização do Estado, com Fichte e Hegel por seus corifeus na Pátria de Kant, no solar do livre exame". Citando George Santayana, vai considerar pagã essa filosofia germânica do eu, "procurando sobrepôr a inteligência como princípio e fim de si mesma, às evidências contantes do ser". Para ele, "na pulverização crescente da sociedade, o 'indivíduo' dos idílios solitários de Rousseau dera lugar ao 'cidadão' dos festins eleitorais do liberalismo" e este "volveu se sem demora no 'produtor' da metafísica bastarda de Karl Marx".


Foi, assim, que o Estado passou de "instituição coordenadora e complementária" a "instrumento de domínio" e que se gerou "o estadualismo mais abusivo e mais arbitrário". Nestes termos, Sardinha vai propôr o regresso ao direito natural, "como compreendia São Tomás e toda a magnífica coorte dos seus comentadores peninsulares da Contra Reforma, com o insigne Francisco Suarez à cabeça". Seria o regresso à liberdade orgânica e à noção de pessoa: " a liberdade, no seu superior sentido orgânico, é natural da Península, sendo entre nós o absolutismo um intruso violento, um hóspede atrevido e não desejado". Com efeito, "os hispanos basearam se sempre, por condição peculiar da sua índole, na noção de pessoa" e não na noção de indivíduo; "a individualidade vem do corpo, da matéria, do instinto. Inversamente, a personalidade da alma. "

Para ele, o cristianismo é uma "grande democracia espiritual, a única, a verdadeira" e "em cujo seio somos todos irmãos e iguais perante Deus, diferenciando se somente pelos méritos adquiridos, pelas virtudes professadas, essa grande democracia espiritual, repito, correspondia ao que borbulhava no mais entranhado do génio hispânico: a ideia da independência e a ideia de responsabilidade".


Este polemista excelso, cuja escrita vibrante sempre andou na procura do mistério da alma portuguesa, levou-o ao profundo desassossego de um projecto por cumprir. Espero que, hoje, na biblioteca do mestre, que se guarda na universidade concordatária, alguém tenha depositado um simbólico ramo de flores. É o que muito espiritualmente vou fazendo, em nome da necessária confraria dos homens livres.

Posso imaginar o que ele escreveria depois do 28 de Maio e quase poderia dizer que estaria ao lado do seu companheiro de sempre, Luís Almeida Braga, denunciando os bobos da Corte e os que enterraram a monarquia, em nome do presidencialismo de primeiro-ministro.