a Sobre o tempo que passa: Entre Freitas e a memória de Suleiman Valy Mamede

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

8.2.06

Entre Freitas e a memória de Suleiman Valy Mamede



No dia em que se assinala o começo da guerra russo-japonesa (1904) que vai terminar com a derrota dos chamados cristãos e o fim dos prestígio vencedor dos Romanov, que tinham acabado de fundar em pleno Pacífico uma cidade dita "a dominadora do Oriente" (Vladivostok) e quando se inociou o enchimento desse D. Sebastião aquífero chamado Alqueva, em marroquino e tudo (2002), vejo que os jornais trazem uma nota de uma Excelência ministerial dos estrangeiros em Portugal que diz ser "Portugal" e que nos põe num "lamenta e discorda da publicação de desenhos e/ou caricaturas que ofendem as crenças ou a sensibilidade religiosa dos povos muçulmanos", declarando que tal "incita a uma inaceitável guerra de religiões", depois da habitual lenga-lenga das sebentas do primeiro ano de direito sobre a liberdade de cada um se espreguiçar ser limitada pelo nariz dos outros e meia dúzia de enciplopedismos sobre a circunstância de as três religiões do livro descenderem de Abraão que o nosso MNE, ofendendo o laicismo de Estado qualifica como profeta.

Sobre a matéria, apenas direi que Portugal não costuma falar "ex cathedra" nem em estilo de dramaturgia de andropausa, sob pena de termos que pedir perdão pelo facto de Martim Moniz se ter entalado na porta do castelo mouro de Lisboa, de D. João I ter reconquistado Ceuta ou de D. Sebastião ter morrido em Alcácer Quibir. Portugal é mais do que essa concepção residual de mera consequência de um paralelograma de forças. E entre os portugueses estão muitos dos islâmicos que foram heróis de guerra sob a bandeira das quinas que construíram uma bela mesquita aberta sobre a Praça de Espanha e que, graças a tipos como Suleiman Valy Mamede, sempre rimou com a portugalidade universal.



Portugal é um espaço complexo demais para o "more geometrico" mental de um ministro dos estrangeiros de um governo socialista que já foi vice-presidente da associação europeia das democracias cristãs e que pretende o eclético do estar bem com Deus e com o Diabo naquele estático centrismo do ficar de cócoras perante a gestão das dependências, sem se afligir até com o fanatismo daqueles manipuladores de massas que mandam queimar as bandeiras medievais da cruz, como é a dinamarquesa, quase igual à do nosso D. Afonso Henriques.

Portugal foi a aula que dei na segunda-feira sobre a matéria, quando tomou a palavra uma aluna maometana, de origem fula, vestida à Sara Tavares e explicando aos colegas católicos, agnósticos e ateus, que a tolerância não é uma sebenta de jurisprudência dos conceitos. E quando foi formulada a hipótese académica de um grande jornal de grande expansão poder publicar uma caricatura ofensiva de Nossa Senhora de Fátima, foi ver a fúria compreensiva dos outros crentes. Apenas lhes disse que tudo só poderia ser resolvido com o Código Penal aplicado pelo poder judicial e não com notas oficiosas do MNE. Até porque, em direito civilizado, a rotina da acção directa não é meio de defesa.



Portugal talvez seja irmos todos à igreja/mesquita de Mértola fazer uma oração conjunta no mesmo espaço divino, em português, expresso por judeus, muçulmanos, cristãos e maçons, todos portugueses, na presença de um bispo cristão e com as beatas alentejanas benzendo-se quando o Corão era lido por um oficiante mometano em lusitano linguajar. Já assisti a uma cerimónia destas, que ajudei a organizar, sob a batuta da saudosa Helena Vaz da Silva. Aconselho o senhor ministro a ler mais Camões e Agostinho da Silva. E a perceber como na nossa mais recente guerra, o factor islâmico até foi nosso aliado, morrendo por aquilo que se decretava ser Portugal.

Portugal nunca rimou com a pseudo-ortodoxia cartesiana do neo-dogmatismo pretensamente antidogmático. Alguma coisa está podre neste reino da nossa Dinamarca. Viva a bandeira afonsina que outros vão queimando com a gasolina cobarde que re-exportamos para as praças do ódio. Oxalá! E até amanhã se Deus quiser!