a Sobre o tempo que passa: Russell, Marracuene, homossexuais e lei das barregãs do senhor dom Afonso o nosso primeiro que morreu sem regicídio

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

2.2.06

Russell, Marracuene, homossexuais e lei das barregãs do senhor dom Afonso o nosso primeiro que morreu sem regicídio



Hoje é um dia, onde, entre as efemérides, apenas apetece salientar a morte, em 1970, de Bertrand Russell, coisa que merece ser acompanhada pela releitura da sua “História da Filosofia Ocidental”, aqui traduzida por Francisco Vieira de Almeida, mais outro que era monárquico e republicano e, consequentemente, opositor ao salazarismo, porque vale a pena regressarmos ao interdisciplinar e aos velhos modelos da ciência da compreensão, num tempo em que os professores pardais da nossa epistemologia de comprimido importado, parecem regressar ao modelo fragmentário das especialidades em casca grossa das pequenas árvores, esquecendo o todo da floresta e o próprio sentido prático da teoria.


É por isso que também quero recordar o combate de Marracuene, de 1895, esse episódio de uma vitoriosa “guerra de África”, tão bem retratado pelo comissário régio António Enes, no tempo em que os relatórios oficiais ainda eram escritos por ilustres jornalistas de boa pena. Este António Enes, também azul e branco na alma e nos actos e, portanto, liberalmente republicano e monárquico, além de ter, então, como lema o “não há Portugal sem África”, talvez tenha sido também um dos primeiros a defender uns Estados Unidos da Europa, mas um pouco antes, em 1871, no rescaldo da guerra franco-prussiana, quando as garras do imperialismo de Madrid nos pareciam querer sugar.

É que, fazendo a conexão, em Marracuene o combate dos tugas não era contra moçambicanos, mas contra o imperialismo britânico que gerara o Ultimato de 1890, coisa que importa relembrar quando outros passaram a ser os imperialismos, depois de extinto o imperial-comunismo dos tempos da guerra dita fria. Por isso, acho estranho que poucos tenham reparado que a visita de Bill Gaitas não foi um acto de filantropia e altruísmo, mas antes um processo negocial, onde se temos que submeter-nos para sobreviver, importa que lutemos para continuarmos a viver.



Por isso reparo e admiro o acto simbólico de propaganda de duas senhoras que ontem bateram à porta de uma conservatória, numa vistosa operação de pressão, em nome daquilo que chamam casamento de homossexuais. Porque quase todo o aparelho produtor de leis em Portugal logo escorregou nessa casca de banana, onde o Bloco de Esquerda proclamou a coragem das modernas democracias e o PSD e PS logo abriram enormes brechas, dado que nos abstemos de falar na autenticidade do PP nesta matéria. Em reportagens de rua, as televisões logo acharam vozes que ora clamavam contra o país conservador e a mentalidade fechada, ora invocavam os fantasmas do regresso à contra-natura, mesmo sem ouvirem as homilias dos servidores do papa Bento XVI.

A matéria não pode ficar dependente de pressões, até porque se houver o mínimo de organização de um “lobby” heterossexual, defensor do conceito clássico de casamento reprodutivo fundador de uma instituição familiar tradicional, este sairá esmagador das minorias. Julgo que tudo seria resolúvel pelas simples liberdade contratual, através de fórmulas imaginativas que criassem novas tipicidades, mas sem alterar as tipicidades casamenteiras e familiares clássicas para os que quisessem continuara a integrá-las, mantendo o nome tradicional para o contrato e a instituição, secularmente testadas. As novas fórmulas de relação interpessoal, se merecem protecção e reconhecimento estadual não podem invadir um espaço maioritário de crenças nem monopolizar a fuga à tipicidade.



Basta recordar muitas outras uniões pessoais que merecem tanta dignidade quanto as do caderno reivindicativo da bandeira do arco-íris. Cores como a da família monoparental e das relações de afecto que não querem passar pelos balcões das conservatórias e que, por enquanto, vão vivendo “praeter legem”, num espaço de afectos e de fidelidades que escapam ao crivo fiscal e dos registos não podem ser desprezados. E o pensamento tradicional de posturas morais e religiosas em que comunga a maioria sociológica nem sequer precisam de ser agredidos, dado que há soluções legais da tal liberdade contratual que podem ser corajosamente inventados por uma democracia moderna, mesmo que tivéssemos de recorrer ao arquivo da história do direito português, onde, ao que parece, a primeira lei geral de D. Afonso Henriques disse precisamente respeito ao que então se qualificava como barregania dos clérigos... bastava por exemplo, pôr ao lado do casamento clássico do Código Civil uma nova instituição dita qualquer coisa, mesmo que poética.~

E tudo se refelecto no "day after" a Bill Gaitas ter posto Portugal aos seus pés, e pobre de mim, coitado, aqui desfeito e entalado entre o há-de ser e o não há, entre o Windows do troca o passo e o 2006, dito, agora, janelas com tabuinhas, com memórias das mariquinhas. Prefiro reparar nos efeitos da carabina do Buiça, nos buicidentes, na mão longa das carbonárias hiperbolizadas e dos hidrícos e congregânicos confessores do paço, esse habitual pasto da nossa imaginação conspiratória, onde entram inquisidores e legítimos descendentes dos moscas do intendente, dos vigilantes da formiga branca e dos híbridos pidescos e afins, os tais que costumam gerar abundantes subsistemas de medo e inúmeras páginas de uma folhetinesca literatura de justificação do "status", onde um mais um nunca é igual a dois, mas antes a uma infindável colecção de delírios.