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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

12.2.06

Mafoma, toucinhos, marianos, subsídios e a falta do medo que guardava a vinha desta fina flor da plutocracia

Nesta serena madrugada domingueira, no dia em que se assinala a morte de Kant (1804), depois de um sábado marcado pelo passamento de Descartes (1650), talvez seja também de recordar também ontem se deveriam recordar as aparições de Lourdes (1858), a conclusão da conferência de Yalta (1945), a libertação de Mandella (1990) e a assinatura do Tratado de Latrão (1929), onde a monarquia italiana reconheceu o Estado do Vaticano. Por isso é que medito na influência que teve a Guerra Fria no comunicado de Freitas do Amaral sobre os "cartoons" de Mafoma sem toucinho, que Medeiros Ferreira, tão ternamente, qualificou como "mariano".

Porque o mundo está feito num barril, cada manif contra o Ocidente é igual a mais um cêntimo no preço do petróleo, quando importava recordar que o mesmo mundo, apesar de ser quase redondo, não tem que ser unidimensional, mas unidiversidade. Com efeito, a CIA, para vencer a foice e o martelo russos, no Afeganistão, deu bombas e treino de guerrilha a Bin Laden e aos agentes wahabitas do Corão, enquanto os generais de Washington de hoje pensam deter o terrorismo do martírio com os meios de repressão que, dantes, continham o terrorismo niilista. Tal como os embaixadores e intelectuais da república imperial supõem que somos todos espadas, fernandes e delgados, onde um mais um é igual a dois, só porque alguém terá dito um dia que quando lhe falam de inteligências puxa logo do livro de cheques, susceptível de promover a diplomacia do croquete, a visibilidade do prestígio ou a gestão da vaidade, num país que ignora o processo que levou os Filipes ao poder ou as peripécias que se sucederam com a chegada de el-rei Junot, onde as invasões sempre se disfarçaram com bonitos nomes de modernização e bela ordem.

O homem de sucesso não tem que ser o homem do poder nem o homem do dinheiro e nessas suas sínteses que são o político feito feitor dos ricos, ou o intelectual feito sacristão dos distribuidores de subsídios ou de avenças. Tal como Salazar era consultor de Moses Bensabat Amazalak, antes de ser chamado pela Ditadura para ministro das finanças, e os homens do Espírito Santo, em vez de pombas místicas, sempre recrutaram Franco Nogueira ou Durão Barroso; e o Jardim Gonçalves deu emprego a Paulo Teixeira Pinto ou a Fernando Nogueira. Isto para não falarmos noutros gestores de alto calibre que vivem nessa zona de penumbra, entre a alta advocacia, os "holdings", a consultadoria e a super-administração bancária, onde se destacam os perfis de Ângelo Correia, Manuel Dias Loureiro, Daniel Proença de Carvalho e Ernâni Lopes que, entre cheques, prebendas, prefácios a livros e negócios, se assumem como a fina flor de um capitalismo lusitano, onde ser liberal pode rimar com Compal, social-democracia com Coca-Cola e doutrina social da Igreja com outra qualquer marca de sucesso.

Assim se confirma que, neste pequenino Portugalório, não há grande espaço de respiração para os homens livres do poder partidocrático e da sedução financista e negocista, face ao instalado sistema de subsidiodependência que vai continuando a segregar aquela baba de que são cobertos os pretensos homens de sucesso. Especialmente, num sítio capitaleiro onde, dantes, o medo guardava a vinha dos rendeiros e senhores de sempre, quando o arame farpado da clandestinidade comunista mantinha intacta a reserva da dita classe operária e a guarda profissional das forças aramadas e militarizadas tanto ameaçava o golpe de Estado como podia garantir o Estado de Segurança Nacional. O resto da pátria, assim guardada, sempre se entretinha entre os fiéis de Fátima, os aplausos às vitórias do Benfica e a possibilidade de igualdade nos pequenos espaços de igualdade de oportunidades que havia na burocracia, no sistema de ensino e aparelhos eclesiásticos e militares.

Cerca de três séculos e meio depois da morte de Descartes e cerca de duzentos anos depois da morte de Kant, a nossa modernidade dos donos do poder continua a viver ao ritmo de um patrimonialismo pouco racional-normativo. Porque, enquanto o pau vai e vem folgam as costas dos que vivem de mão estendida à espera do reconhecimento do subsídio ou da avença. E só alguns radicais, passíveis de uma declaração de insanidade, continuam a ser ingénuos neste mundo de gente lúcida, mesmo que certos assumam a lucidez de serem ingénuos, não se deixando enredar no moluscular peganhento dos petróleos e nas queimadelas de um nuclear que deixa sempre resíduos de lixo, para milhares de anos.