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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

20.4.06

Em dia de Lei da Separação e terrorismo oteleiro, prefiro a Passarola e confessar-me estóico, que hoje é dia de Marco Aurélio

Abril, sem águas mil, em dia vinte, nos traz duas memórias de coisas más, para mim, desde a Lei da Separação da Igreja e do Estado, de 1911, esse decretino ditatorial e pré-constitucional com que Afonso Costa celerou a democracia e contribuiu para que nos envenenássemos de congreganismos e anticongreganismos, ao anúncio da formação das FP25 de Abril, com que os oteleiros, com criador ou sem criador, nos gerararm uma criatura terrorista que acabámos por decepar com algum profissionalismo militar e certa agilidade do Estado democrático.

Prefiro, no dia vinte, recordar que em 1709, Bartolomeu de Gusmão experimentou a Passarola, que era uma nau que voava, antes de Santos Dumont e Gago Coutinho pertenceram a pátria diversas, mas dos mesmos Estados Unidos da Saudade. Prefiro até ir mais longe e recordar que no ano de 121 nasceu Marco Aurélio.

Tal como em Cícero e em Séneca, concebe-se a política como um reflexo da ordem cósmica e a res publica, como uma espécie de participação do homem na cadeia universal. Porque, se, em Platão e Aristóteles, ainda permanece aquilo que alguns qualificam como uma racionalização da natureza, já emerge uma espécie de naturalização da razão. Um republicanismo estóico, onde também se defende uma moralização da política e que vai ser, depois, desenvolvido pelos autores cristãos

Onde a história política é perspectivada como um encadeamento de ciclos onde as mudanças podem ser regressos, numa espécie de anaciclose. Mas onde se ultrapassa um certo etnocentrismo dos escritores atenienses, abrindo-se tanto para a humanitas como para o próprio mundo, nomeadamente quando se faz a defesa do omnium gentium consensus.

Porque a lei natural do mundo fora de nós se identifica com a lei moral racional em nós, porque o natural e o racional coincidem e viver segundo a natureza é viver segundo a razão. Se a natureza continua a ser a forma ou a ideia, onde vive aquilo que é justo por natureza (physikon dikaion), o chamado direito natural, distinto do direito posto na cidade, do direito positivo, do nomikon dikaion, eis que passa a haver uma terceira ordem, mais produto da acção do homem do que da sua intenção, uma ordem espontânea, autogerada pelo tempo, endógena, que corresponderia ao kosmos e se contraporia à ordem confeccionada, exógena, artificial, resultado de uma construção.

Marco Aurélio utiliza o conceito mágico de concórdia, entendido como um reflexo da ordem divina do universo e da lei que o rege, a razão do homem, pelo que as várias pátrias físicas estariam para a comunidade humana como as famílias para a cidade. Porque se a inteligência nos é comum a todos, também o é a razão que faz com que sejamos racionais. Sendo assim, também a razão imperativa daquilo que se deve fazer ou não fazer nos é comum; e assim também a lei é comum; portanto somos concidadãos: portanto participamos todos no mesmo regime civil; portanto o mundo é como uma cidade.

A alma e a matéria passam assim a ser dois aspectos da mesma realidade. Nestes termos, haveria uma só lei universal, regendo tudo, uma lei universal na qual todos os homens participariam enquanto seres racionais. Porque, dizer natureza era pois o mesmo que dizer justiça, esse qualquer coisa de metapolítico sem o qual não pode haver política, essas leis inscritas no coração e na consciência dos homens.