Marx, marxistas, Freud, filosofia do desejo, Sophie Calle, D. João II e Estado de Direito
Por exemplo, o Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie, 1867-1894, de Marx, apenas foi objecto de uma primeira tradução directa do alemão em 1990, cerca de século e meio depois do manifesto de 1848, devendo-se o início de tal excelente tarefa científica ao Professor Doutor José Barata-Moura, numa missão conjunta da Editorial Avante de Lisboa e das Edições Progresso de Moscovo, mas já fora do tempo, em plena perestroika.
Os chamados novos filósofos franceses dos anos setenta, ditos filhos do Maio de 68 que, pouco mais que uma década volvida, tratam de repensar os fundamentos da respectiva ilusão revolucionária que chegou a ser maoísta e trotskista, só desencadeiam um vigoroso ataque aos fundamentos do próprio marxismo, denunciando os esquemas do totalitarismo soviético e chinês que dele foram consequências, no ano de 1975, quando andávamos a comer a papa do PREC e a tecer loas ao realismo socialista, soviético ou chinoca.
Daí não termos reparado como os herdeiros do pessimismo de Adorno e Horkheimer, criticaram Marx e Saint Just, invocando Sartre e Rousseau. Desta maneira, assumiram uma espécie de contrapoder que, apesar de ser biologicamente de esquerda, como confessa Lévy, os não impediu de uma profunda crítica, tanto ao estalinismo como ao próprio socialismo,enquanto formas institucionalizadas de poder.
Porque, tal como Marcuse consideram que a imaginação pode conduzir, como na arte clássica, à reconciliação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, mantendo, deste modo, no plano da filosofia, o frustrado grito de revolta do Maio de 1968: l’imagination au pouvoir. Glucksmann, Lévy e Jean-Marie Bénoist assumem o regresso a Rousseau. Foucault reinterpreta Marx conforme Freud. Deleuze e Lyotard misturam Marx e Nietzsche, enquanto Poulantzas reassume a teoria marxista de Estado, reinterpretando Marx à luz de certas pistas lançadas por Trotski e Gramsci.
Agora, todos nos embrenhamos no centenário de Freud, e glosamos as glosas sobre Die Traumdeutung, saída um ano antes da viragem do século XIX para o século XX, e não reparamos como, no mesmo tempo cronológico, podemos viver em tempos mentais diversos e até chamar progresso a reaccionarismos, só porque estes são por nós recepcionados com muito atraso. Foi assim com Marx e com Freud e continua a ser assim com os pretensos pós-modernos da tradução em calão. Por isso, assinalo que na próxima terça-feira, perto do Marquês de Pombal, no nascente círculo da Kiekebenart, há quem nos venha falar de Sophie Calle (terça-feira, dia 9, às 18 h e 30 m), coisa que só daqui a cinco ou dez anos se tornará rotina entre os pseudo-vanguardistas do situacionismo que, por enquanto, não reparam que vivemos em pleno maremoto de criatividades e complexidades, típicas da encruzilhada. Por cá, enquanto Freud senta pacientes na marquesa, ainda nos deleitamos clandestinamente com a tese de doutoramento do Doutor Egas Moniz, que o autoritarismo salazarista permitia comprar, mas com prévia receita médica...
Uma última palavra para o nosso D. João II, um dos resistentes antimaquiavélicos, assumido praticante da ética tradicional portuguesa, que deve ser considerado um dos pilares daquilo a que hoje chamamos Estado de Direito, como me foi ensinado por Miguel Reale e Martim de Albuquerque. Ele, o príncipe perfeito, era-o efectivamente, porque proclamava que se o soberano he senhor das leis, logo se fazia servo delas pois lhes primeiro obedecia. Não há nada mais mentiroso do que pô-lo precursor do Marquês de Pombal, Afonso Costa ou Oliveira Salazar, conforme um artigo que me recordo de, na revista Política, do doutor Jaime Nogueira Pinto, ter lido de um distinto ministro do dito Oliveira, agora ilustre hierarca da pós-revolução e vendedor das tretas conceituais do neo-realismo norte-americano.
Porque um dos princípios reveladores desta ideia está na tradicional prática do contencioso administrativo. Com efeito, pelo menos desde os tempos de D. Afonso II e de D. Dinis que a Cúria conhecia de litígios entre o rei e os vassalos. Com D. Dinis já aparece para executar essa missão um ouvidor dos feitos do rei. Com D. Afonso IV surgem dois ouvidores para as causas especialmente da coroa. Com D. Pedro I são os juízes do aver delRei que tinham todos os poderes nos assuntos que não implicassem graça. Nas Ordenações Afonsinas conserva-se um juiz dos feitos do rei na casa da justiça(I, VI), mantendo-se a situação nas Ordenações Manuelinas (I, VII).
O mesmo D. João II, no preâmbulo das Cortes de Évora de 1481-1482 dizia: segundo dicto do nosso Remydor jezu christo non viemos para quebrantar as leis, nem o que devemos, mas ante pera o muy jnteiramente comprir e guardar: pero segundo a variedade e sobcessps dos tempos convem aos Reis e prinçipes de Santa e virtuosa entençam mudar, limitar e declarar, ader e interpretar as constituições e posiçõees humanas por as causas urgentes e bem e publico proveito. por tall que as leis sempre aiam com vigor e força de servir o fim nunca mudavel e causa finnal do direito. o qual he rrefrear e limitar os apititos desordenados sob iusta e direita regra. O que todo se deve fazer com grande madureza e deliberaçom dos prodentes.
Um episódio narrado por Garcia de Resende na Chronica dos Valerosos, e Insignes Feitos del Rey Dom Ioam II, é revelador dessa autenticidade: Estando el Rey hum dia com desembargadores sobre um feyto seu, depois de lido, e a casa despejada pera darem seus votos, disse o Doutor Nuno Gonçalves: "Senhor, nos não podemos aquy votar neste feyto; perguntou el Rey, porque; disse o doutor: Porque vossa Alteza he parte nelle, e está presente. El Rey levamtouse em pe, avendo disso desprazer, e disselhe: Isso me aveis vos de dizer? como em mim se entende isso, se eu sam a mesma justiça, como ey de ser parte. E el Rey com payxam pasceou hum pouco polla casa sem falar nada, e tornou logo a mesa, e encostado nella em pe disse: Doutor, eu vos agardeço muyto o que me dissestes, e fizestelo como muyto bom homem que sois. E a mim me parece assi como a vos, que não devo de ser presente, e por isso me vou, e todos julgai segundo vossas consciencias: e sahiose logo, e deixouos sos.
Este facto histórico, justamente valorizado pelo grande filósofo do direito contemporâneo, o brasileiro Miguel Reale, em Cristianismo e Razão de Estado no Renascimento Lusíada, e depois retomado por Martim de Albuquerque, constitui a demonstração que o poder do Estado não pode absorver a justiça, à qual melhor podem aceder as consciências dos justos julgadores. Tem, assim, como ingredientes fundamentais os elementos do chamado Estado de Direito Democrático. Mesmo o poder absoluto do rei, mas o rei está submetido à lei.
D. Jerónimo Osório é, a este respeito, inequívoco. Retomando as teses de Cícero, fala no estado da república como coisa perfeita, definindo-o como o conjunto dos hoimens unidos pelo direito, no qual todos os cidadãos estão ligados entre si por uma aliança pública, estão à uma, absolutamente de acordo no que respeita à salvação pública. Para ele, nada há que tanto mantenha a república como a lei e o Rei é o guarda, o defensor e o administrador do direito público. Logo, se transgredir as leis, atraiçoará a sua função, arruinará a república confiada à sua fidelidade e atrairá, sobre si, a ira de Deus ... quando as leis forem desprezadas por quem governa o povo, todos aqueles que, por suas posses ou favor, tiverem importância na república, dirão que é ignomínia sujeitarem-se às leis. E, assim, não perderão qualquer ensejo, que se lhes apresente, de violar a lei. Logo, o Rei que desprezar as leis, levará à desgraça, com seu exemplo iníquo e injusto, toda a república
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