Viva Rousseau! Viva Espinosa! Viva Kant!
28 de Junho, dia de muitas memórias, desde o triste referendo sobre as condições criminais da interrupção voluntária da gravidez, onde clara e frontalmente perderam as minhas convicções (1998), ao da edição de "Le Portugal Bailloné" de Mário Soares (1972), onde muitos costumam ir ver as diferenças do original face à posterior tradução portuguesa. Mais além do nosso quintal, assinale-se que em 1914 se deu o atentado de Serajevo, rastilho da Grande Guerra, para nesta mesam data, mas de 1919, se assinar o Tratado de Versalhes, antes de em 1931 ocorrerem as célebres eleições em Espanha para a Constituinte, com vitória da coligação socialista-republicana. Por tudo isto é que prefiro comemorar uma data de 1712, quando nasceu aquele que para mim é o maior escritor de teoria poítica destes últimos tempos: Jean-Jacques.
Rousseau nasce em Genebra, em circunstâncias trágicas, dado que a mãe morreu durante o parto, prenúncio de uma existência agitadíssima. Aos dez anos chega a vez do pai, relojoeiro, o deixar entregue a si mesmo iniciando-se aquela promenade solitaire ou vagabundagem marcada por um permanente autodidactismo. Encontra o primeiro trabalho como empregado de notário e depressa se acolhe à protecção de uma Madame Warens, católica, agente do rei da Sardenha. É então que se converte ao catolicismo e que foge para Turim.
A partir de 1744 instala-se em Paris, onde encontra nova companheira, a antiga criada de quarto, Thérèse Levasseur, começando uma actividade de escritor de óperas. Entra então em contacto com os intelectuais mais influentes da época, como Voltaire, que o detesta, e Diderot, que o contrata como colaborador da Enciclopédia. Mas é apenas com trinta e oito anos que se experimenta como escritor quando concorre para a Academia de Dijon, apresentação do trabalho Discours sur les Sciences et les Arts (1750), que lhe dá fama e dinheiro, propondo-se, a partir daqui, a elaborar uma obra global sobre as Institutions Politiques.
Mas só cinco anos depois surgem alguns frutos desse projecto: para além do Discours sur l’Économie Politique, publicado na Enciclopédia, é editado, no mesmo ano de 1755, o Discours sur l’Origine de l’Inegalité parmi les Hommes. Em 1761 volta ao calvinismo e começa a escrever La Nouvelle Heloïse. Em 1762 chega a vez de Emile ou sur l’Éducation e da principal obra, o Du Contrat Social. Principes de Droit Politique.
Continua, no entanto, uma vida errante. Em 1756 vai para o Ermitage. Em 1758 está em Montmorency. No mesmo ano em que o Emile era queimado publicamente em Paris, em 11 de Junho de 1762, também o Du Contrat Social sofre de idêntica sorte em Genebra, segundo sentença de 19 de Junho, por ser tendente a destruir a religião cristã e todos os governos. Entre 1763 e 1764, instalado em Val de Travers, na sua Suíça, escreve as Lettres Écrites de la Montagne. Segue então para Inglaterra a convite de David Hume. Aí escreve Les Confessions (1764-1770). Surgem depois as Rêveries d’un Promeneur Solitaire (1776-1778) e a vagabundagem prossegue: Normandia, Lyon, Monquin e Paris, mais uma vez.
Em 1764-1765 é a elaboração do Project de Constitution pour la Corse, apenas publicado em 1861. Em 1771 chega a vez de Les Considérations sur le Gouvernement de Pologne et sur as Réformation Projectée, publicado em 1782. Morre em Ermenonville (2 de Julho de 1778). Pede para ser enterrado no jardim da Ilha dos Choupos, mas as cinzas em 1794, são transferidas para o Panthéon.
Na base do pensamento de Rousseau está o estado de natureza, entendido como a verdadeira juventude do mundo onde os homens eram originariamente livres e iguais, bons e felizes, o coração em paz e o corpo em saúde. Essa quase Idade de Ouro platónica seria uma espécie de estado pré-social e até pré-moral, onde o homem se assumia como um agente livre e dotado de perfectibilidade, um estado que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá e sobre o qual, entretanto, é necessário ter noções correctas para bem julgar o nosso estado presente. Era um tempo de ócio, de indolência, onde os únicos bens seriam a comida, a fêmea e o repouso, e os únicos males, a dor e a fome.
Depois deste estado selvagem, é que os homens ascenderam à sociedade civil, um mal inevitável criador de um regime artificial de desigualdades, ao colocar os homens na mútua dependência, contrária aos princípios naturais do seu modo de ser. Surgia assim o estado de civilização e com ele viria o contrário do ócio e a petulante actividade do amor próprio. Há assim um dualismo entre nature e domination, acreidtando que o fundamento da autoridade humana não vem de Deus nem da natureza.
Como fazer a viagem de regresso, como recuperar a liberdade perdida? Reconhecendo a impossibilidade de um regresso puro e simples, porque não é possível a um velho regressar à mocidade, Rousseau propõe, como forma de restituição aos homens do gozo dos seus direitos naturais, a constituição de um contrato social de responsabilidade limitada, em que a pertença ao corpo político não teria de significar a destruição da liberdade de cada um.
A civilização ou sociedade civil, no sentido de sociedade política, é que teria criado um regime artificial de desigualdades, colocando os homens em mútua dependência: o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer “isto é meu”. Isto é, depois das desigualdades naturais ou físicas, seguiram-se as desigualdades morais ou políticas, onde, além da diferença entre os fracos e os fortes, acresceram as diferenças entre os ricos e os pobres, entre os senhores e os escravos.
Eis, portanto, o contrato social, que não assentaria na força, na autoridade paternal ou na vontade de Deus, mas sim no livre compromisso daquele que se obriga. Ele seria um pacto duma espécie particular, pelo qual cada um se compromete com todos os outros; donde se segue o compromisso recíproco de todos para com cada um, que é o objecto imediato da reunião.
A partir de então é que emerge o corpo político e moral, essa comunidade marcada por um moi commun. Um contrato social que, no entanto, constituiria mera determinação da razão e não um facto historicamente verificado, significando um tipo-ideal de constituição política em que os indivíduos conferem ao Estado os seus direitos naturais, para que este os transforme em direitos civis, que concede aos cidadãos.
Ao contrário dos defensores do duplo contrato, eis que, para Rousseau não há senão um contrato no Estado, é o de associação e este exclui qualquer outro; não se poderá imaginar qualquer outro contrato público que não seja uma violação do primeiro. Só depois viria um pacto de Governo, onde se dá a dissolução do povo que perde a sua qualidade de povo.
É que importava encontrar uma forma de associação pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça todavia senão a si mesmo e continue tão livre como dantes. Onde cada indivíduo, contratante, por assim dizer, consigo mesmo, encontra-se comprometido numa dupla relação, isto é, como membro do soberano em relação aos particulares e como membro do Estado em relação ao soberano. Assim, os associados tomam colectivamente o nome de povo, e chamam-se em particular cidadãos, quando participantes da autoridade soberana e súbditos quando submetidos à lei do Estado.
A partir desta distinção, o Estado deixa de ser um mero mecanismo, retomando-se o conceito substancial do político, oriundo de Platão. Neste sentido, Rousseau, conforme salienta Eric Weil, descobre o conceito moderno de razão como unidade de teoria e de acção, de pensamento e de moral, de consciência individual e de lei universal. Com efeito, o Estado volta a adicar-se no interior do homem, numa atitude moral situada no próprio coração do cidadão. Se assim se regressa a uma ideia de vontade racional, dá-se, contudo, um distanciamento face aos autores clássicos, porque a vontade geral é atribuída a todos os indivíduos e não apenas a uma minoria esclarecida ou educada. Aliás, segundo Rousseau, todos os homens possuem a possibilidade de uma vontade racional, pelo que a vontade geral deve vir de todos e ser aplicada a todos.
É da ideia de vontade geral que o mesmo autor extrai o conceito de soberania, entendida como o exercício da vontade geral, como algo de indivisível e de inalienável, dado que o poder é susceptível de se transmitir, a vontade, não. Deste modo, as cláusulas do contrato social reduzem-se à alienação total de cada associado com todos os seus direitos a toda a comunidade, pelo que o contrato social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus membros.
O Estado é também instituído pela vontade geral, sendo encarado como uma pessoa pública ou uma pessoa moral, detendo uma espécie de eu comum (moi commun): tomava noutros tempos o nome de cidade e toma agora o de república ou de corpo político, o qual é chamado pelos seus membros Estado, quando é passivo, Soberano, quando é activo, Potência, ao compará-lo aos seus semelhantes.
É um ser abstracto e colectivo cujo instrumento é o Governo, entendido como um corpo intermédio estabelecido entre os sujeitos e o soberano por mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política. É a acção de todo o corpo agindo sobre si próprio, isto é, a relação do todo com o todo, ou do soberano com o Estado
Nestes termos, considera incompatível com a natureza do corpo político que um Estado possa estar submetido a outro Estado. Apenas compreende que dois Estados possam estar submetidos ao mesmo principe, porque são as instituições nacionais que formam o génio, o carácter, os gostos e os costumes de um povo. Assim, considera que é a educação que deve dar às almas a forma nacional e dirigir de tal maneira as suas opiniões e os seus gostos, que elas sejam patriotas por inclinação, por paixão, por necessidade. Uma criança, abrindo os olhos, deve ver a pátria e, até à morte, não deve ver mais do que ela. Todo o verdadeiro republicano suga com o leite materno o amor da sua pátria.
Rousseau também não aceita o conceito aristotélico do homem como animal naturalmente político, dado que o estado de natureza é perspectivado como algo de fundamentalmente pré-social. Reconhece que o Estado foi instaurado pelos que se apropriaram dos maiores bens e para benefício dos mesmos e que o próprio poder do Estado degenerou quando o capricho dos poderosos passou a governar.
Estas sementes de Estado-razão serão, depois, desenvolvidas por Kant, onde o contrato social (Staatsvertrag) se transforma na razão pura prática, como universal legisladora (rein rechtlich gesetzgebende Vernunft), em ideia pura com fins regulativos. A própria vontade geral (allgemeiner Wille) torna-se a própria vontade racional de cada um dos membros da comunidade, considerados como personalidades autónomas no acto de estas obedecerem ao imperativo categórico e de se tornarem, como tais, legisladoras duma legislação universal.
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