a Sobre o tempo que passa: agosto 2006

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.8.06

Mais um dia de sertão sem ser bandeirante

Depois de um intenso regresso às aulas no dia de ontem, com doutorandos e mestrandos de relações internacionais, comecei hoje minha pausa matinal por ir à feira do livro de Brasília, percorrendo os alfarrabistas cá da capital federal, os chamos sebos. E deparei-me com os restos de um magnífica biblioteca de um professor brasileiro dos anos cinquenta, tendo adquirido um original da dissertação de doutoramento de Raymond Aron. Apenas notei que, naquela estante, onde estavam tipos como Pareto, Mannheim, Comte, Davy, Sorokin e tantos outros, bem manuseados e distintamente postos em carneira, se demonstrava como as elites universitárias brasileiras estavam mais abertas ao mundo das sociologias e dos pensamentos políticos do que as nossas, entaladas que estavam entre o direito constitucional e os princípios de doutrina social da Igreja Católica, para bom uso das disciplinas de Organização Política e Administrativa da Nação.

Quem não reconhecer que o Brasil estava à nossa em matérias de ciência política e relações internacionais não consegue compreender como aqui podemos vir aprender. É o que estou fazendo, ao mesmo tempo que à hora de almoço, como um professor brasileiro, de origem japonesa, sou capaz de perder tempo a discutir Silvestre Pinheiro Ferreira ou José Bonifácio, tal como ontem referíamos a tradução portuguesa de "O Federalista" feita em 1841... no Rio de Janeiro, por José da Gama e Castro, que era miguelista e tudo.


Quando venho a estes fundos do Brasil, procurando compreendê-lo, sem os preconceitos do cheguei e sei tudo, sinto que começo a ser um especialista em Brasil, porque sou capaz de reconhecer que preciso de vir cá muito mais vezes e durante mais tempo para descobrir nova faceta neste Novo Mundo que eu amo.

29.8.06

À sombra do pinheiro de mestre Agostinho

Desenganem-se todos quantos me pensaram de férias, na doce calma do não fazer nada. Se há semanas me não blogueio, outra é a razão, mobilizado que tenho estado pela revisão de um longo livro sobre metodologias da minha área científica e pelo próximo lançamento de um espaço "net" sobre história do presente. Que as aulas estão prestes a começar. Para mim, é já daqui a um pedaço, aqui na Universidade de Brasília onde me encontro, tentando dar uma perspectiva europeia e portuguesa das teorias políticas das relações internacionais.

E cá estou nesta capital federal, cidade de Agostinho da Silva, neste sertão de terra vermelha e mangueiras, nesta cidade sonhadas por Juscelino e arquitectada por um povo que a fez cruz e asa de avião. E lá trago as minhas agendas de procura, estes "carnets de politologue", onde tento deter o "mouvant" com um pouco de "pensée". Preciso destas saídas transatlânticas, a caminho do Sul para me sentir mais morenamente lusíada, procurando respostas para estes novos sinais do tempo.

Sou, infelizmente, daqueles que não sabem o que querem nem para onde vão, porque julgo que vale mais a autenticidade da procura, mesmo quando não se acha. Não sou dos que lamentam já não haver doutrinas que tenham força, nessas linhas que davam racionalidade ao pretenso processo histórico que não tinha previsto o fim da URSS e uma globalização com neoliberais e fundamentalistas islâmicos. Chamar caos ao que tem sido o presente baralhar do construtivismo de certas concepções do mundo e da vida talvez seja uma caricatura.

Aqui estou neste Brasil de campanha presidencial, ainda sem lhe sentir a alma. Porque o Brasil continua bem longe dos nossos namoros retóricos, como certamente foi notado por Sócrates na sua última visita de Estado. Porque não é apenas com diplomacia e adidos culturais que daremos vida aos eternos Estados Unidos da Saudade.

Daqui a bocado, lá terei uma turma deste curso de doutorado e sinto que vou cumprir uma missão que ultrapassa a minha privacidade. Sinto que carrego a responsabilidade de também poder cumprir o legado que me deixou mestre Agostinho da Silva no tempo dos pioneiros de Brasília, quando, começando a ensinar num barracão, decidiu semear nesta cidade do Novo Mundo um pinheiro português...

10.8.06

Efémero e efemérides...

E cá continuam minhas descontínuas efemérides. Hoje, nove de Agosto. Quando em 1945 caiu sobre Nagasaqui a segunda bomba absoluta. Na mesa data em que se dava a cerimónia do casamento de D. Maria Pia com D. Luís em Turim, isto é, quando os Braganças se uniram à Casa de Sabóia e passaram a ser mal-amados face ao Papa. Quando, em 1935, se desencadeou uma revolta de Francisco Rolão Preto contra o salazarismo.

Memórias que ontem, dia oito, não assinalei. Porque nesse dia do ano de 1975 tomava posse o quinto governo provisório, o último de Vasco Gonçalves, com que se fechava o PREC. No mesmo dia do ano de 1974, quando Nixon se demitia depois do escândalo de Watergate. Recordando 1912, na data em que Norton de Matos fundava a cidade de Nova Lisboa, no planalto do Huambo ou 1917, quando se fundava o Centro Católico Português, o partido católico em que militava Salazar, tão ordeiramente constituído por deliberação da Conferência Episcopal, quanto a União Nacional vai ser fundada por decisão do Conselho de Ministros.

E nestas efemérides da minha agenda, onde quase todas vêm da minha recolha pessoal de factos, e não dos almanaques que por aí se repetem e traduzem em calão enciclopédias, finjo que falo do passado, através de metáforas, sujando as mãos em compromissos do tempo que vai passando. Reagindo contra a ilusão de resolver guerras com o desespero das armas irresistíveis, através das quais costumamos medir a superioridade civilizacional da pretensa história dos vencedores.

Abrindo a caixinha fechada dos nossos fantasmas. Das relações da maçonaria e do catolicismo com o poder civil do Estado Contemporâneo. Desde a circunstância de a nossa última dinastia se ter irmanado com a tricolor maçónica de Garibaldi e Mazzini, o que tanto irritou o papa, à verdade de nosso Império Colonial recente ter sido uma criação de azuis e brancos e verde-rubros, também maçonicamente marcados, em nome da bela ideia de missões civilizadoras laicas, com que nos adaptávamos ao ritmo do nacionalismo místico da III República Francesa e do british modelo do white man’s burden.

E outro fantasma é o de Rolão Preto. Que tanto foi um fascista autêntico como um anti-salazarista consequente, de golpe de Estado e tudo. Coisa que em Espanha é acompanhada por um Dionísio Ridruejo, o autor do hino da Falange, do Cara al Suel, que passa a democrata antifranquista.

Por outras palavras, muitas lendas e narrativas de certa literatura de justificação dos camaleões, adesivos e viracasacas não aguentam a prova dos factos. É por isso que me divirto quando, ligando a televisão, reparo como antigos ministros que comandavam a PIDE nos continuam a dar lições de teoria da democracia.

7.8.06

Rememorando fotografias da terra inteira, Balfour, Hiroshima e cabos transatlânticos de telégrafo

Sete de Agosto. Recordo esta data do ano de 1959, quando, pela primeira vez na história, o homem conseguiu fotografar, a partir do espaço, o próprio planeta, graças a um satélite norte-americano. Assim se consguia dar sentido gráfico ao abraço armilar, cumprindo o plano de Fernão Magalhães. Sete de Agosto de 2006, quando aninda nos enredamos nas patetices da Balfour Declaration de 2 de Novembro de 1917, que prometia aos sionistas a instalação, na Palestina, de um lar para esse povo sem pátria que eram os judeus. E apetece rememoriar o que, ontem, dia seis de Agosto não consegui: a bomba atómica sobre Hiroshima. A tal procura da arma absoluta devastando os inimigos. Tal como o que, anteontem, dia cinco de Agosto, também não anotei: o lançamento, em 1858, do primeiro cabo de telégrafo transatlântico. Para não falar no ano de 1962, quando foi encontrada morta, Marilyn Monroe.

E lá vou continuando a pensar em paz e guerra mesmo à beirinha das cálidas ondas da preguiça de férias, onde vamos dando graças ao Criador por aqui não caírem as bombas do ódio, dado que as nossas explosões políticas e sociais estão sob rigoroso controlo de umas canalizações representativas que ainda funcionam. Porque os cálculos dos ganhos e perdas nos conseguem situar no pelotão dos que vão vivendo menos pior, no âmbito desses remediados vencedores da globalização. Felizmente que não fazemos parte da multidão dos injustiçados.

Neste recanto da Europa, entre muito linguajar turístico de loiros bosches e deslavados bifes, reparo que a velha aldeia dos pescadores foi submersa por imobiliárias e empreendimentos. Confesso que, assim, não apetece a tradicional metafísica do reflexionismo, dado que, infelizmente não trouxe leitura de fim-de-semana. Apenas apetece retomar a senda de escrever-me, encontrar em qualquer das curvas da escritura um sem porquê que me permita voltar ao necessário lirismo. Porque, se exercitar a palavra, todos os dias, surgirão palavras que vais guardando sem notares. Já tomei o meu banho atlântico, já sequei o corpo, olhando o sol de frente, já cumpri o plano de me me escrever.

4.8.06

Dos intelectuários que se servem a si mesmos

Acordo pela madrugada e ligo um dos raros programas dos últimos restos de profissionais da literatura e crítica, à João Gaspar Simões, essa subsecção da corporação de editores e livreiros, vértice autoritário daquelas múmias de uma “intelligentzia” que se assume como definidora de quem pode aceder à casta dos escritores e cronistas da nossa estreita e reaccionária praça.

Reparo que são três membros do mesmo restrito clube das citações mútuas, o tal que determina inquisitorialmente o que é a boa esquerda e a boa direita, bem como a boa civilização, a boa Europa, a boa globalização, isto é, aquele campo que decretinamente querem comandar só porque julgam conhecê-lo.

Os ditos, pretensamente omniscientes e omnipotentes, são daqueles nossos habituais bons rapazes, que se pensam os únicos e os bons só porque se encontram na esquina dos mesmos jornais que lhes pagam a mesada. Eles odeiam, fingindo que não odeiam, da mesma forma como fingem que não obedecem àqueles que lhes pagam. Muitos pretensos inteligentes não passam de meros intelectuários…

Este foi o maior oficial que houve do nosso ofício. Este é o meu rei, este é o meu rei

Hoje, dia 4, vou comemorar 1578, dia da batalha que nos ensinou que vencer é ser vencido: Alcácer Quibir. E pouco interessa que D. Sebastião, nascido em 20 de Janeiro de 1554, bem depois da primeira publicação das Trovas de Bandarra, não tenha correspondido ao perfil do rei visionado pelo posterior sebastianismo. Ele apenas tentou viver como lhe ensinaram a pensar, apenas tentou levar à prática a teoria então dominante entre pensadores da Corte, principalmente entre os confessores e os aios. Ele que podia equivaler-se a um Infante D. Henrique se a respectiva conquista de Ceuta, chamada Alcácer-Quibir, não se gorasse, parecia não possuir o jeito da governação das coisas práticas, não se assumindo como o gestor de uma grande companhia como era a Ordem de Cristo, nem revelando a ganância daquele que procurava juntar monopólios de comércio.

Era também o exacto contrário do tio Cardeal que, esse, sim, representava a síntese entre os respectivos pai e irmão, isto é, entre D. Manuel I e D. João III. D. Sebastião, com efeito, tinha muito do estilo cavaleiresco de D. Afonso V, mas, ao contrário deste, nunca teve um príncipe D. João a cobrir-lhe a rectaguarda da governação ou a levar-lhe o apoio militar em caso de campanha militar de sorte mais duvidosa.

Acresce que o próprio reino já não possuía aquele grau de saudável unidade que se manifestava cem anos antes. Será, contudo, fácil transformar a pessoa do rei morto e derrotado num bode expiatório. Culpa começou por ter toda a comunidade quando nele depositou todas as esperanças chamando-lhe maravilha fatal da nossa idade e dando-lhe sonho demais para gerir um aparelho de poder dominado pela frieza de um cálculo estratégico. A comunidade exigia-lhe impulso para a augmentação quando o que estava em causa era sobretudo gestão e defensão.

Teve, portanto, a loucura de querer viver como pensava. O erro esteve, pois, não no viver, mas no pensar e no sonhar. No ousar o impossível quando se impunha a arte do possível, isto é, o abandono das praças africanas e a procura de alianças no concerto na balança de poderes. Por isso não seguiu os conselhos do Cardeal, as avisadas palavras de D. Jerónimo Osório ou, no momento final, a fortaleza de capitães como Cristóvão de Távora, que lhe sugeriram um recuo. Ousou ser falcão em tempo de coruja, não querendo entender que, em determinados momentos, importa que nos submetemos para podermos sobreviver, a fim de renascer aquele vivo que deve lutar para continuar a viver.

O exagero de D. Sebastião terá, depois, o exacto contrário no Cardeal-Rei, que não governa como pensava, quando não tem força física e anímica para escolher o sucessor que no íntimo da coerência autonomista, de certo, acalentava, D. Catarina de Bragança, permitindo que o partido de D. Catarina de Áustria acabasse por vencer, através de Cristóvão de Moura. O Cardeal, Rei não será rigoroso na leitura do nosso direito constitucional, praticando uma inconstitucionalidade por omissão de vontade. E foi essa ausência de intervencionismo real que levou à chamada perda da independência.

Atingia-se o clímax de um vazio de rei, tendo colmatado a lacuna o absolutismo colectivista de uma classe política predominante, a da Corte. Sobretudo, num momento em que esse espaço do político estava ocupado pela facção dos Áustrias, enquanto os opositores cometiam o erro de apoiar D. António e de assim cair na ratoeira dos apoios franceses. Gerou-se deste modo o atrofiamento da nossa vitalidade, quando se impediu a hipótese da república poder manifestar a respectiva vontade permitindo-se a ascensão daquele influente que, invocando a espada e o tesouro, tratou de ocupar o centro político.

Depois de Alcácer-Quibir, o velho partido autonomista, representado pelo Cardeal D. Henrique, com o apoio de Frei Bartolomeu dos Mártires, D. Jerónimo Osório, Diogo de Couto e Pedro Barbosa, está apertado entre os que alinham com Cristóvão de Moura e os que, com Febo Moniz, nos termos da prática de 13 de Janeiro de 1580, quando o Cardeal-Rei teve uma entrevista com os procuradores do primeiro banco, querem resistir, não extinguir a nação, conservando este reino na liberdade em que os reis (... ) antepassados (... ) o fizeram.

Só que, como observa Costa Lobo, Filipe II, relativamente a D. João I de Castela, tinha mais quatro reinos só na península ibérica, além de Nápoles, da Sicília, de Milão, do Franche-Comté, dos Países Baixos e das Américas. Tinha o papa e o Imperador da Alemanha como aliados e não temia nem uma França, ainda dividida por guerras religiosas nem uma Inglaterra a recompor-se da sua ruptura com Roma... Tinha com ele não só a força das armas e do dinheiro, como também algum direito resultante daquele jogo das alianças dinásticas com que a dinastia de Avis se envolvera com Castela, com D. Afonso V, D. João II, D. Manuel e D. João III.

Tinha havido Aljubarrota, contra o perigo castelhano, tal como depois iria suceder Toro, contra o perigo português. Afonso V, o derrotado de Toro, era bisneto de D. Juan I de Castela. Isabel I, de Castela, a vencedora de Toro, era bisneta de D. João I, o vencedor de Aljubarrota. D. João II havia casado o príncipe D. Afonso com Isabel, filha dos Reis Católicos. D. Manuel I, casando com a viúva de D. Afonso, fez jurar o filho D. Miguel da Paz, como herdeiro dos dois tronos. Carlos V casa com D. Isabel, filha de D. Manuel I e, do consórcio, nasce Filipe II. D. João III casa com D. Catarina, irmã de Carlos V e tia de Filipe II. O filho de D. João III, D. João, casa com D. Joana, filha de Carlos V e desta união resulta D. Sebastião. Filipe II é descendente dos vencedores de Aljubarrota e de Toro. Tão geneticamente Avis quanto Habsburgo.

Malhas que a genealogia foi tecendo... Nas Cortes de Tomar de 1581, Filipe II mais não faz do que repetir as Declarações del-Rei D. Manuel, de como se havia de governar o Reyno de Portugal, depois que o Principe seu filho, que herdava Castella, succedesse naquelles Reynos, onde pode ler-se: a principal couza (... ) he que o dito Principe meu filho, e os que depois delle vierem, governem as couzas destes Reynos por officiaes delles, e que a elles todallas couzas delles encomendem, e nom a extranjeiros, que non sabem os costumes da terra, nem se podem tam bem conformar com os outros naturaes delles.

Nestes termos, determinava que quando quer que o dito princepe meu filho, ou qualquer dos seus herdeiros, vier a estes Reynos que, logo que nelles entrar, todollos officiaes de Castella e Aragam que trouxer deixem as varas da justiça que trouxerem, e as tomem os officiaes Portuguezes, e nenhum outro official extrangeiro tenha juridiçam em couza alguma, em quanto em Portugal estiver, salvo que os do seu Conselho e officiaes de Castella e de Aragam possam entender nos negocios e couzas que dos ditos Reynos vierem.

Mas como observava Garcia de Resende na sua Miscelânea: Vimos Portugal, Castela, / quatro vezes ajuntados, / Por casamentos liados/ Príncipe natural d'ella / que erdava todos reynados. /Todos vimos falecer / em breve tempo morrer / e nenhum durar três annos. / Portugueses castelhanos, / não os quer Deus juntos ver.

Portugal transformara-se num país sem rei nem lei. Um rei que não se perdera apenas em Alcácer Quibir, mas, sobretudo, quando, durante as regências de D. Catarina e do Cardeal D. Henrique, o poder supremo se fragmentou em facções que propiciaram um vazio de ideias que a força das relações internacionais acabou por invadir. Uma lei que se tornou inautêntica quando, por acção e omissão, se desrespeitaram as leis fundamentais que constituíam a base da legitimidade da dinastia de Avis, nomeadamente o apelo às cortes em momentos excepcionais.

O poder real que na Idade Média conseguira a unidade na diversidade de um regime misto, reforçado em 1385 e não desfeito com D. João II, dilui-se, na sequência da morte de D. João III, quando se transformou num mero lugar de confusão de poderes, onde regentes, Consejos, validos e confessores, enredados em disputas de etiqueta e mercês, perderam a representatividade e não respeitaram os limites que constituíam a sua própria natureza.

Em vez dos três estados em Cortes Gerais, emerge a dissolução da Corte. A família real dividiu-se, a nobreza fragmentou-se, a Igreja esboroou-se, e cada uma das facções inventou um bode expiatório e recorrendo a aliados externos, de Filipe II ao próprio Papa.

A bissectriz de todo esse paralelograma de forças chamou-se D. Sebastião. O Desejado. Queriam que fosse a segurança da lusitana antiga liberdade. Mas apenas lhe deram jesuítas contra todas as outras ordens, nobreza contra nobreza, e avó contra tio-avô. Toda a anterior literatura sobre a educação de príncipes era agora desafiada pela realidade de uma criança que, aos três anos, fora feito rei, com o pai morto antes dele nascer e com a mãe a largá-lo a uma classe política sem o norte do bem comum. Portugal terá um rei educado por uma espécie de laboratório construído por teorias.

Em vez de um pai e de uma mãe, deram-lhe aios, do velho soldado D. Aleixo de Meneses a Febo Moniz, confessores como o jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, e mestres, como o cosmógrafo-mar Pedro Nunes. Aos catorze anos de idade, o jovem rei já assume a governança sem nunca ter sido menino, numa altura em que a comunidade lhe pede que surja um novo reino com as virtudes dos antigos portugueses.

Apesar de tudo, D. Sebastião ainda tentará cumprir aquele programa de consta de um memorial escrito pelo seu próprio punho antes de tomar o governo do Reyno. Tentará viver como pensava, sem pensar como vivia. Tentará transformar a carcaça corrompida do velho reino num reino adolescente: Trabalharey muito por dilatar a Fé. Favorecerey muito as cousas da Igreja. Armar todo o Reyno. (... ) Não crer levemente, e ouvir sempre ambas as partes (... ) Conquistar, e povoar a Índia, Brasil, Angola e Mina (... ) Reformar os costumes começando primeiro por mim no vestir, e comer. Em negocios ter primeiro conta com o bem comum, e depois com os particulares(... ) As leys que fizer, mostrallas primeiro a homens de virtude e letras para que me apontem os incovenientes que tiverem. Levar os subditos por amor(... ) Serey pay dos pobres, e de quem não tem quem faça por elles.

No fundo, quer ser El Hombre, quer retomar D. João II e por isso, em cerimónia junto do túmulo aberto daquele seu antecessor, embora não ascendente, proclama: Este foi o maior oficial que houve do nosso ofício. Este é o meu rei, este é o meu rei.

É um tempo de apocalipse com os cavaleiros da fome, da peste e da guerra. Fenómenos naturais como tremores de terra, são vistos como castigo de Deus. Em 1531, em Santarém, Gil Vicente teve que fazer uma pregação contra os frades que ligaram o terramoto então ocorrido à permanência em Portugal dos judeus. Em 19 de Abril de 1506, o simples reflexo do sol num crucifixo da Igreja de S. Domingos, qualificado por um cristão novo como mero reflexo de uma vela, leva a que aos gritos de Heresia! Heresia!, saídos de dois frades dominicanos, a populaça, apoiada por marinheiros nórdicos, desencadeie um pogrom com um saldo de dois milhares de chacinados judeus. Cometas são vistos como sinais de Deus.

Chegáramos à Índia, conquistáramos as Américas, circum-navegáramos a Terra, mas, na Europa, dividida entre protestantes e católicos, ameaçava o turco e circulavam os judeus. Nesta pequena casa lusitana, onde em Coimbra e Évora, os próprios teólogos invocavam a razão contra as teses da predestinação do novo agostianismo protestante, neste nosso ninho, onde o experimentalismo e a ciência progrediam, a massa informe de um povo marcado pela história trágico-marítima, enredava-se no providencialismo e retomava os milagres.

Na crise de 1578-1580 as principais forças espirituais portuguesas estão com a faceta de rei natural de Filipe II. Move-as menos a Hispania do que a Cristandade. Sentem que falta uma potência católica na Europa para fazer face tanto ao perigo turco como à ameaça protestante. Entre a aliança com o rei de Espanha, a intervenção dos franceses ou a chamada dos protestantes ingleses, preferem o menor dos males e votam por Filipe II.

Mais não fazem do que aquilo que as elites vão fazer com Napoleão através de El Rei Junot. Aquilo que a maçonaria vai fazer com os franceses, a partir de 1806, foi aquilo que a Igreja Católica fez com os espanhóis em 1580. Certo que, depois, ambas as entidades se vão redimir. A Igreja com os alcobacenses e os manuelinhos; a maçonaria com os republicanos, na sequência do ultimatum.

Traidores sempre os houve, principalmente por uma errada inter­pretação da aliança conveniente no jogo das relações internacionais. Traíram os realistas miguelistas quando cederam aos ditames da Santa Aliança, através de Metternich, Wellington ou Luís XVIII. Traíram os oposicionistas aos salazarismo quando cederam a ditames das internacionais comunistas, socialistas ou liberais, como já antes traíra o salazarismo quando cedeu à moda dos impérios coloniais.

Sempre a tentação de alinhar com outras internacionais ou outras potências em nome de impérios universais. Contudo, em qualquer um dos seus momentos dolorosos, a pátria acaba sempre por retomar a vontade de autonomia, quando os descendentes dos traidores se nacionalizam e sobressai novamente a lusitana antiga liberdade, aquele português antigo de antes quebrar que torcer, aquela mistura de telurismo e oceano que nos faz um português à solta, onde o agricultor vai de caravela pelos mares ou se transforma em bandeirante pelo sertão. Ou, muito principalmente, quando, pela pena, se constrói o poema, cronicando a história ou chamando ensaio à filosofia, aquelas redes que sustentam a imaginação de quem ousou mais além para defender o daquém. Sempre foi assim que, muito cientificamente, fizemos sebastianismo, racionalizando aquilo que anteriormente era um mero fundo imaginativo.

1.8.06

Um de Agosto, a guerra segue dentro de momentos

Um de Agosto. Em 1935, os comunistas cá do reino, promoviam um dia mundial contra a guerra e o fascismo. Em 1961, também nesta data, começava a queda dos restos de Império, com o abandono, pelo residente oficial, depois de prévio incêndio, do forte de São Baptista de Ajudá, sito no Daomé, esse velho sinal de um establecimento pré-colonial que nos fazia lembrar outra África onde deambulámos, antes da coorida ocidental ao continente desconhecido.

Um de Agosto, hoje. Dia dois da lista dos devedores fiscais, pouco mais de duas centenas e meia, depois de haverem anunciado cinquenta mil, reduzidos para três mil e coiso. Eles lá sabem das trapalhadas! Julgo que seria bem mais correcto retirar alguns direitos de cidadania, nomeadamente o de voto, a quem não quer cumprir os seus deveres fundamentais de cidadania, nomeadamente o pagamento do imposto.

O sol se foi. E ficou leve nuvem de cinza sem o peso do frio. Até o mar ficou de verde chumbo. Está chão, de apetecer cruzá-lo em barco a remos. Parece um longo lago que nos convida para a viagem. Recorto, dos barulhos que me chegam, o insistir solitário de um grilo que algum miúdo ainda guarda numa qualquer gaiola de cana, o chilreio de uma qualquer ave exótico que um vizinho retém e quando o ruído poluente dos carros nos deixa de incomodar, volta o fundo barulho das ondas, neste som de pausa que vai subindo em meu redor