a Sobre o tempo que passa: E que viva o Reino Unido!

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

12.9.06

E que viva o Reino Unido!

Aqui continuo neste grande mar do sertão, onde os bandeirantes deram aos locais deste novíssimo mundo os nomes dos ventos de Atlântico Sul, aqui onde navegar é preciso para que viver possa continuar a ser possível, através de uma inevitável submissão para a sobrevivência, através de uma gestão das redes de influência em que se vão fragmentando as teias dos donos do poder. Onde quanto mais localmente feudal se situa o senhorio mais este tem de disfarçar-se de estadão.

E foi assim que assiti ao fim da carreata de Roriz e da sua candidata Abadia, ao estádio Mané Garrincha, coisas que ninguém fala aí entre as reportagens da macropolítica que só contabiliza tucanos e pêtistas, esquecendo que há um maior partido brasileiro, tipo saco de gatos, o PMDB, que aposta forte nas candidaturas locais e estaduais, nesse processo de contínua actualização do coronelismo e do federalismo. Porque nunca quis ser governo e dono da presidência, só uma vez a atingindo pelo acaso, quando Sarney teve de substituir Tancredo.

Digamos que, por cá, pouco interessa a leitura dos documentos fundamentais dos vários partidos e movimentos. Como diria o marechal Castelo Branco, na prática, a teoria é outra, isto é, a música celestial das doutrinas não explica como Lula virou liberal ou os tucanos, providencialistas, nesta plástica tão brasileira do submeterem-se para sobreviverem.

Reparo como o jornal principal cá da capital federal, retoma o título de uma gazeta liberal lusitana, "Correio Braziliense", quando o sonho da mesma revoluç-ao liberal ainda se conjuga em reino unido, congregando elites de aquém e de além mar, antes de comerciantes de grosso trato animarem a estúpida perspectiva nacionalitária do "passe bem, senhor Brasil", gerando estúpidos separatismos nos dois lados do Atlântico e não atendendo ao sonho de Silvestre Pinheiro Ferreira.

Muitos esquecem que a mudança da capital de Lisboa para o Rio de Janeiro não ocorreu por pressão de Junot, dado que a mesma era uma alternativa estratégica desde 16140, várias vezes acalentada por D. Pedro II e aparecendo até no Testamento de D. Luís da Cunha como objectivo nacional.

Porque nesta banda lusíada do Atlântico Sul, naquilo que foi a América Portuguesa, sempre se publicaram obras de exílio da Europa Portuguesa. Desde os trabalhos do miguelista José da Gama e Castro, ao primeiro volume dos Ensaios de António Sérgio. Por aqui peregrinaram ilustres nacionalistas místicos de estirpe maçónica, como Jaime Cortesão e Agostinho da Silva ou densencantados do 28 de Maio como Fidelino de Figueiredo. E por cá até morreu Marcello Caetano, semeando discípulos como Ubiratan Borges de Macedo, por acaso ligado familiarmente ao próprio Fidelino.

À esquerda e à direita, entre os sonhos do progresso ou as nostalgias da reacção, o Brasil sempre foi espaço, não de exílio, mas de refúgio e alento para transfigurações e redescobertas da arte de ser português. Sem este espaço de alento, conforto e reconciliação, com doçura tropical, muito do que melhor se produziu entre certos portugueses tinha ficado no limbo das boas intenções. Espero que a vida continue. Navegar é preciso. Viver também.

É que por cá se não cravaram fundas as garras inquisitoriais, ou o clericalismo anticlericalista dos que proíbiram vestes talares ou o toque de sinos. A tolerância é condição ontológica do Brasil. O novo mundo só existiu para que os europeus nele pudessem fugir a perseguições de dogmatismos e fundamentalismos,.

Não consta que nesta banda do mundo tenham emergido os totalitarismos, nem por cá se contabilizam democídios, como os que mataram cerca de 200 milhões de seres humanos no século XX, para que as doutrinas se pudessem martelar.

Por isso, o sonho construtivista de cidades voando para o paraíso, onde Brasília tem algo do sonho de Norton de Matos no Huambo, à procura de uma Nova Lisboa, para se transformar num eventual Rio de Janeiro e que algumas vozes da actual Luanda querem continuar, com a edificação de uma Angólia. Porque a terra que tem por capital uma cidade com nome de São Paulo alimenta algumas das sementes deste desejo de novo mundo e de novo grande espaço para o sonho dos que gostam de navegar no sertão. Viva o Reino Unido!