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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.10.06

Contra as traduções em calão de nacionalismos exógenos...

Quando ficamos retidos entre as quatro paredes, por motivo de doença, e temos tempo para perder o tempo, fechando a televisão e a rádio e não lendo jornais, apenas voltados para os papéis do pensamento, podemos fazer daqueles balanços a que dantes se dava o nome de exame de consciência, porque "je pense, donc je suis", para logo me interrogar, como o mesmo mestre, "mais qu'est-ce donc que je suis ? Une chose qui pense. Qu'est-ce qu'une chose qui pense ?". E assim posto em turbilhão, resta saudar novo dia que vem e procurar nascer de novo.

Porque ontem, assim aborrecido com as dores do corpo, mas com a alma em asa, não olhei para o discurso de Sócrates, nem para as antevisões do Porto-Benfica, optando por continuar a circular pelas chatíssimas operações de revisão do meu próximo livro, onde tenho que martelar num texto com dez anos de gaveta. Porque, onde em 1996 eu vivia a dor da revolta, ainda com esperança nas instituições, reparo que, hoje, me assoberba o desencanto, embora permeçam vivas "as esperanças de Portugal" e o "futuro do mundo". Porque só é novo aquilo que se esqueceu.

Infelizmente, devido à febre, não assisti ao começo do televisivo debate sobre a eleição dos grandes portugueses e não posso dar a minha opinião sobre tão magna discussão, típica dos frequentadores de Portugal como Torre do Tombo ou dos escrevinhadores de certidões de óbito de "uma certa ideia de Portugal". Porque, quando uma geração tem a mania de esquecer que "todas as nações são mistérios", resta exilar-me "deste país" para procurar Portugal de forma universal, naquela semente que outros nos deram e que a outros transportámos.

É o que tenho sofrido nesse "je pense" sobre o "mouvant", nesse "eu" de sempre que navega nas presentes "circunstâncias". Mesmo quando vou às profundas raízes do nosso pensamento político, encontro, como mestres da nossa profunda tradição, um Álvaro Pais ou um Frei João de São Tomás que não eram portugueses, ou um Infante Dom Pedro, que apesar de português, traduzia o que, da civilização que assumia lhe vinha por Frei João Verba. Tal como Velasco Gouveia ou João Pinto Ribeiro reproduziam da neo-escolástica.

Isto é, o que de mais autêntico há nos portugueses de radicular procura sempre foi estrangeirado e cosmopolita, num autêntico nacionalismo anti-nacionalista, porque abrasado pela procura do "abraço armilar". Daí que deteste os pretensos nacionalismos que não passam de "tradução em calão" de nacionalismos exógenos, preferindo o processo de "nacionalização das tendências importadas".

Muito pessoanamente, saliento que a nossa nação só o pode ser quando se assumir como "caminho para a super-nação futura".


Eu próprio, quando penso a política, não passo de mero repetidor do que recupero de Aristóteles e do que me foi reproduzido por Hannah Arendt ou Simone Goyard-Fabre, as minhas mães do pensar complexo, à século XX, chegando sempre à perene conclusão que somos quase sempre uma espécie de avós de nós mesmos, especialmente quando atingimos a originalidade de não querermos a originalidade.

É o que me acontece quando, às vezes, tenho a ilusão de fazer uma descoberta neste navegar quotidiano pela teia de Penélope do pensamento político. Porque quando penso que inventei uma ideia nova, logo me alegro quando descubro que a mesma já tinha sido descoberta por tipos como Platão e que, ainda recentemente, foi glosada por um dos meus irmãos desta seita da procura.

É então que fico entusiasmado, porque me me sinto acompanhado pelo padrão dos que penso que pensam de forma racional e justa, ousando persistir na mesma procura, para que outros, depois de mim, persistam nesta bela aventura. Nascer de novo, afinal, é conservar uma semente que tem vinte e cinco séculos.