Poderes soberanos e de autoridade, em regime de ditadura da incompetência
Fiquei esclarecido. Em vez da redefinição constitucional das "funções nucleares" do Estado, o senhor ministro da função pública brinca agora com os conceitos de soberania e de autoridade, restringindo esta ao chanfalho da tropa, dos polícias e dos espiões. Por isso, aqui vão umas palavrinhas das ciências ditas sociais, sem avença nem subsídio da FCT.
E também uma ajudinha ao senhor ministro das ciências ditas exactas sobre o confusionismo em que se enredou por causa do perfil institucional das fundacionais universidades. Que tal recordarem-lhe que tal modelo nasceu no ordenamento jurídico português por causa do testamento do senhor Gulbenkian e que a coisa foi tratada criativamente por uns juristas como Marcello Caetano, Ferrer Correia e Azeredo Perdigão. Não valeria a pena criar-se de novo pela arte da invenção e pelo patriotismo científico um articulado condigno com a instituição universitária? Basta pedir a Marcello, Ferrer e Azeredo, isto é, à doutrina assente na experiência, para que ela volte a ser fonte do direito posto. Isto é, recorram à autoridade que vem de autor e não ao poder e aos pequenos poderes dos micro-autoritarismos subestatais, vigente na anarquia pouco ordenada deste neofeudalismo, em regime de ditadura da incompetência.
Porque autoridade vem do latim auctoritas, isto é, produção, exemplo, prestígio, modelo. Numa simples definição cibernética, autoridade é o poder conferido pelo consentimento. Logo, algo que obriga mas não coage. Não descendo à ordem física como a potestas, eleva o poder à ordem moral e à ordem jurídica. É o direito de controlar a acção dos outros sem ser pela força. Daí que num qualquer sistema político a autoridade seja o lugar onde se acumula o poder.
Em sentido amplo, a autoridade equivale à confiança. Se é obedecida em consciência, também gera a hierarquia e a desigualdade. Com efeito, ter autoridade é ascender a um nível superior. E o mais superior é aquele que se assume como o fundador, como o autor, como o semeador. Porque é nos alicerces que está a verdadeira superioridade.
Aliás, só nos parece possível compreender a especificidade do poder político se lhe tomarmos duas perspectivas: - do lado daqueles que obedecem (a legitimidade) - do lado daqueles que mandam (a autoridade). Na primeira, tentaremos detectar aquilo que permite e suscita o consentimento. Na segunda, procuraremos aquilo que propicia o comando com obediência espontânea.
Na primeira, verificaremos que se procura a obediência espontânea, dado que apenas se usa a força como última instância. Na segunda, detectaremos que, na distribuição de valores ou de recursos, estes são sempre distribuídos com autoridade através de instituições autorizadas.
Importa, pois, integrar as questões do poder político nas matérias da legitimidade e da autoridade, para acedermos, por um lado, ao que permite o consentimento e, por outro, ao lugar mais alto onde se acumula o poder.
Consideramos com efeito que só é possível entender o poder político, quando se integra o poder na autoridade a perspectiva do poder tomada do lado dos que mandam, aquele quid que propicia o comando com obediência espontânea e na legitimidade a perspectiva do poder a partir do lado dos que obedecem, aquilo que permite e suscita o consentimento.
Com efeito, na política, há sempre uma distribuição de valores ou de recursos que é sempre feita com autoridade, enquanto a força é usada com legitimidade. Optamos assim pela dimensão globalista, transcendental, institucionalizada e normativa do poder político, sem ilusões quanto à societarização do poder, conforme a proposta das escolas do neo-realismo político., impulsionadas pelo funcionalismo e pelo sistemismo. Com efeito, não nos parece conveniente confundir o comando com o arbítrio nem a protecção coactiva com a coerção.
Porque o poder político constitui um todo elástico que integra ou coordena os mais variados poderes. É um todo que não resulta da soma aritmética das respectivas parcelas, mas sim do modo como as mesmas se relacionam, dado que, se os diversos poderes caminharem na mesma direcção podem gerar uma mais-valia, uma maior soma de energia.
Por exemplo, se os variados poderes, nomeadamente o ideológico, o cultural e o económico, se mobilizarem em torno de um fim comum geram bastante mais poder colectivo que se conflituarem sobre os objectivos.
Pelo contrário, quando os poderes ideológico, cultural ou económico entram em conflito, dão-se situações de bloqueio e de eventual confronto, podendo conduzir ao declínio.
Como salientava Hannah Arendt, ao contrário da força, que é dom e pertença de qualquer homem, no seu isolamento, contra todos os homens, o poder apenas acontece se e quando os homens se unem entre si no propósito de exercerem uma acção, e deixa de existir quando, por qualquer razão, eles se dispersam e abandonam uns aos outros.
Com efeito, quando os homens se unem entre si surge um poder institucional e simbólico. Um poder que passa a misturar os factos, as práticas materiais, entre as quais se inclui a força, com as ideias, com o fim que comanda a acção, penetrando-se, deste modo, nas zonas do normativo.
Este poder é não só força externa como também representação quanto ao futuro esperado, segundo Georges Burdeau. Esse poder que é uma categoria específica das relações sociais (Beattie), e que aparece normalmente qualificado em letra maiúscula como Poder.
Um poder entendido como uma estrutura complexa de práticas materiais e simbólicas destinadas à produção do consenso, segundo Max Weber.
Esse poder global ou institucional que é algo mais que o conceito psicológico de poder, entendido como o conjunto dos meios presentes destinados a obter um bem futuro, essa capacidade de conseguir com que os outros façam o que eu quero, que se encontra em todas as relações humanas, esse conjunto dos meios que permitem conseguir os efeitos desejados, para utilizarmos a expressão de Bertrand Russel (Power is the capacity of some persons to produce intended and foreseen effects on others).
O poder político não se confunde com a simples coerção – com a possibilidade de levar alguém a fazer alguma coisa contra a respectiva vontade, com a força que pode obrigar outrem a obedecer – não se reduzindo à imposição a outrem de algo que este não deseja espontaneamente.
O poder político é uma capacidade criada por um acordo social, é sempre alguma coisa que tem de ser conjugada no plural, onde a união pode fazer a força, onde a união pode produzir mais força que a simples soma das forças dos vários particulares que integram essa união.
Quando falamos em poder político, estamos a referir-nos à interacção ou à mobilização em torno de um fim comum que pode gerar uma maior soma de energia. Onde um forte rei pode fazer forte a gente fraca; onde as vulnerabilidades podem transformar-se em potencialidades. Ou vice versa, onde um fraco rei pode fazer enfraquecer a gente forte; onde as potencialidades podem ser vulnerabilidades.
Para compreendermos o poder político, temos assim de ascender dos poderes ao poder, temos de medir a distância qualitativa que vai do medo ao consentimento, entendendo em profundidade o manda quem pode, obedece quem deve, onde há sempre, de um lado, um poder-dever e do outro um dever-poder.
Estamos a referir-nos, não a um intersubjectivo jogo de soma zero (zero sum), onde aquilo que um dos jogadores ganha, perde o outro, mas antes a um jogo de soma variável, onde os jogadores competem uns com os outros, mas onde todos podem ganhar, conjuntamente. Estamos a referir-nos ao poder que o homem pode compartilhar com outro homem e onde todos podem beneficiar colectivamente.
O poder político, ou Poder com letra maiúscula, é um todo elástico que integra ou coordena os mais variados poderes. Neste sentido, o Poder não é uma coisa, mas um relação, não é algo que possa medir-se pela simples aritmética de uma adição de poderes, não é mero resultado de um paralelograma de forças.
Trata-se de um complexo de funções com significação estrutural estratégica, conforme a definição de Talcott Parsons, onde, como iremos ver, há pouvoir mais puissance, Macht mais Herrschaft.
Porque, como dizia Schiller, a única coisa que torna poderoso aquele que manda é a obediência daquele que obedece. Porque, como dizia Rousseau, ainda o mais poderoso de todos os homens não será suficientemente poderoso, se não souber converter o seu poder em direito e a obediência dos outros em dever (le plus fort n'est jamais assez fort pour être toujours le maître s'il ne transforme sa force en droit et l'obéissance en devoir).
Passemos agora à perspectiva do poder tomada do lado daqueles que mandam, analisando a problemática da autoridade. Se procurarmos uma definição enciclopédica, poderemos dizer que a autoridade é uma capacidade de influir noutros graças a certa superioridade por estes reconhecida, ou o direito de dar uma ordem , de tal maneira que o comando seja obedecido sem que seja questionado tal direito, isto é, o poder que é aceite, respeitado, reconhecido e legitimado.
Isto é, para a noção comum, a autoridade não é o mesmo que a capacidade de fazer cumprir uma ordem, mesmo que seja sem o consentimento do subordinado. Quem tem autoridade precisa do reconhecimento dessa qualidade pelo outro, e só tem autoridade aquele a quem os subordinados reconhecem legitimidade. A autoridade, com efeito, exige tanto superioridade como reconhecimento, porque há um que é superior ao outro e este outro reconhece no primeiro essa posição de supremacia, o que permite transformar o poder, enquanto vis coactiva, em poder, enquanto vis directiva. Logo, havendo autoridade, tanto não há igualdade, dado haver um que está acima e outro que está abaixo, como também não há plena liberdade, dado que se exige reconhecimento.
Hannah Arendt salienta, quanto à autoridade, que o nome e o conceito são de origem romana, distinguindo-se entre a auctoritas, que pertencia ao Senado, e a potestas, que cabia ao populus.
A palavra auctoritas deriva de auctor, daquele que não é o construtor, o artifex, mas antes o que inspirou a obra. Na base está o verbo augere que significava aumentar, desenvolver, fazer crescer, tornar mais forte alguém ou alguma coisa, pelo que a auctoritas em sentido etimológico tem a ver com produção, criação, exemplaridade, modelo, prestígio, conselho. Auctor é assim o que promove como o seu exemplo e conselho o bem de uma coisa.
Logo, se ter autoridade significa aumentar ou desenvolver, ela dependia da vitalidade do espírito de fundação, em virtude do qual era possível aumentar, desenvolver e alargar as fundações, tal como elas haviam sido alicerçadas pelos antepassados. Assim, a própria coincidência da autoridade, da tradição e da religião, todas três procedendo simultaneamente do acto da fundação, era a espinha dorsal da história romana, desde o início até ao fim.
De facto, o próprio conceito de autoridade romana sugere que o acto de fundação desenvolve, inevitavelmente, a sua própria estabilidade e permanência, e a autoridade, neste contexto, não é nem mais nem menos do que uma espécie de 'argumentação' necessária, em virtude da qual todas as inovações e alterações permanecem ligadas à fundação. Ter autoridade implica assim ter o sentido do fundador, ser o preservador, assumir a tradição e, portanto, regenerar, retomar a pureza das origens.
Era assim que em Roma se entendia a autoridade do Senado, a patrum auctoritas, sempre entendida como um aumento: as decisões do Senado, por exemplo, eram entendidas como uma confirmação de um acto de vontade do povo, sendo mais do um conselho e menos que um comando, uma espécie de conselho que não poderia deixar de seguir-se, segundo Mommsen.
Compreende-se assim que a autoridade tenha a ver com a hierarquia e o escalonamento.
Como salienta Talcott Parsons, a autoridade é um tipo de superioridade que envolve o direito legitimado (e/ou obrigação) de controlar as acções de outros num sistema de relação social. Contudo, segundo as palavras de Jacques Maritain, a autoridade é direito, não é força, pelo que deve ser obedecida em consciência. Ela é o direito de dirigir e de comandar, de ser escutado ou obedecido por outro. Aliás, para o recente Catecismo da Igreja Católica, de 1993, doutrina católica, a autoridade é aquela qualidade em virtude da qual pessoas ou instituições dão leis e ordens a homens e esperam obediência da parte deles. Também João XXIII observava que a mesma não é força desordenada; é sim faculdade de mandar segundo a sã razão. A sua capacidade de obrigar deriva, portanto da ordem moral, uma força moral que não se baseia exclusaiva ou principalmente na ameaça ou temor de castigoas ou na promessa e saolicitação de recompensa, devendo apelar para a consciência do cidadão, isto é, para o dever de prontificar-se a contribuir para o bem comum (Pacem in Terris).
Fernando Pessoa, por seu lado, observa que há necessidade de uma força consolidada, translata, a força tornada abstracta, aquela base de governo que vem depois do governo da força e antes do governo da opinião, salientando que tal situação não dura sempre, porque nada dura sempre neste mundo. Sendo a autoridade um prestígio ilógico, tempo vem em que, degenerando ela como tudo, a inevitável crítica humana não vê nela mais do que ilogismo, visto que o prestígio se perdeu. A autoridade é incriável e indecretável, e a tradição, que é a sua essência, tem por substância a continuidade, que, uma vez quebrada, se não reata mais.
Georges Burdeau considera que o poder é a possibilidade de ser obedecido, enquanto a autoridade é vista como a qualificação para dar uma ordem. Adianta que se os chefes dão tanto valor a que os considerem legítimos é porque a legitimidade lhes traz um acréscimo de autoridade que eles não podem receber senão daí. Ao poder que se impõe ,ela acrescenta a qualidade que se liga a um poder consentido, porque a legitimidade enobrecendo a obediência, converte em obrigações nascidas de um dever o que eram somente atitudes ditadas pelo temor. Enfim, introduz o poder no universo mágico das representações e das crenças...Metamorfose moderna da sacralização do poder, a legitimidade laiciza o seu fundamento sem lhe enfraquecer a solidez, visto que substitui a investidura divina pela consagração jurídica.
Para o mesmo autor, se o Poder tem a ver com um fim, o bem comum, e que é este que transforma a puissance em autoridade, a puissance sob o aspecto exterior, pelo qual se nos revela, aparece como facto, dado que é o poder de comandar de maneira a que se lhe obedeça. Não é o direito nem a possibilidade de comandar, é simplesmente o fenómeno que exprime a execução da ordem dada. Nestes termos, acentua que o poder deve ter puissance para que nasça o Estado até porque um dos traços essenciais das sociedades pré‑estaduais é a instabilidade do Poder apoiando‑se apenas na puissance
Karl Deutsch, por seu lado, considera que a autoridade é aquilo que nos faz obedecer, na ausência de supervisão e de coerção, sendo equiparável a uma votação por actos, como acontece numa guerra, com o rácio deserção e prisioneiros/ mortos em combate, equivalendo à consciência, ao que controla os nossos actos quando ninguém nos está a observar.
Deste modo, a autoridade é algo que se interioriza, tornando-se parte integrante dos sentimentos mais profundos. É assim que aprendemos a associar as ordens dos nossos pais com a realidade e, tanto as ordens com a realidade. Depois, pela vida fora, as ordens ou instruções de um professor ou de um superior podem ter-nos recordado a voz dos nossos progenitores.
Tem também relação com a a credibilidade de uma fonte de informação: acreditar-se-á nas suas emensagens sem se verificar o seu conteúdo, dando-se mais atenção a quem fala do que àquilo que é dito.
Com efeito, a autoridade surge da confiança e desenvolve-se através do prestígio. Voltando a Fernando Pessoa, diremos que havendo um prestígio que se sinta e enetenda, todos os outros prestígios, ainda do que não entenda ou sinta, naturalmente se lhe ajuntam, logo alguém comece a dizê-los. Até acontece que quando um homem tem como qualidades marcantes aquelas que faltam ao povo a que pertence, o seu prestígio é imediato, emboa seja, talvez, sempre um prestígio frio e constrangido – um prestígio intelectual, sem elemento emotivo.
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