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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

8.3.07

Quando o Estado é invadido pelos cultores do doméstico, é o despotismo que regressa, neste protesto de um liberal defensor do Estado

Continuam as cenas do Portugal do Valentim Loureiro e da OPA da PT, com os norte-americanos a denunciarem as nossas violações do direitos humanos e a malta a fechar a embaixada no Iraque, enquanto bem mais deliciosas são as cenas que nos chegam pela "inside information" dos circuitos capitaleiros e castíferos deste Estado a que chegámos, onde, da Universidade aos órgãos a quem deixámos as "funções nucleares do Estado", tudo se reduz a uma série de anedotas, onde a palavra cobardia se tornou um "normal anormal", num modelo onde a patrimonialização do poder, típica da legitimidade tradicional da classificação weberiana, onde há sultões mas não heróis, se tornou tão natural como o ar que se respira.

Por outras palavras, o Estado da legitimidade racional-normativa, onde a ditadura do funcionário e o direito à carreira tentaram ultrapassar o sistema dos donos do poder, entre o coronelismo e a cunha, já não há. Por enquanto, vigora o regime dos pequenos chefes que chamam ao gabinete funcionário a funcionário com vínculo precário e lhe recordam que devem assinar a lista de apoio à respectiva reeleição, numa paródia de democracia que se transformou num carimbo, num manto diáfano de fantasia que recobre a rudeza dos grupos de pressão e de lançamento de formas indirectas de compra do poder, num sistema de história dos vencedores onde continua a vencer quem não tem razão.

Tenho saudades do tempo de certa função pública que vivi, de técnico de segunda a assessor principal, antes de 1990, quando me doutorei. Tenho saudades desses tempos onde também fui dirigente da coisa, de chefe da divisão e director de serviços, bem como subdirector geral, mas no meu quadro de origem. Onde, apesar das crises políticas e dos controlos do FMI, a legitimidade racional-normativa de Weber ainda marcava o ritmo. Porque foi nesse ambiente que me tornei um liberalão, com uma ficha de serviços coerente de técnico da velha direcção-geral de preços que, enquanto adjunto de governos preparou tecnicamente tanto o fim dos preços tabelados e dos lucros controlados quanto a introdução de uma lei de concorrência.

Por isso, sorrio quando noto como hoje demora um ano um simples processo e como temos desuportar o passeio de vaidades do líder de uma entidade reguladora que, na sua tentação pelo mediático, talvez não tenha tempo para propor uma regra processual adequada ao ritmo da globalização. Eu que fui um homem da concorrência dos tempos primitivos e que andei pelas entidades decisoras europeias, apenas sorrio e recordo com saudade a minha querida Teresa Ricou, de quem fui subdirector geral, e os processos expeditos que usávamos quando permitimos a transição para coisas como a liberdade do comércio, sem as medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas, que eu bem conheço dos tempos da UNCTAD.

Felizmente que hoje pairo no reino dos princípios, mas conheço bem os tempos do GATT e o mundo das pautas e das facturações, bem como os meandros do comércio alimentar, quando em direcções-gerais dominadas por comunas, direitistas como eu éramos nomeados, para depois nomearmos comunas, pelo simples recurso a critérios de competência e irmandade na defesa do bem comum, o tal onde se consegue estabelecer a clássica diferença entre o público e o privado, ou entre o que é do doméstico e o que é do político.

Por mim, liberal empedernido, que não quer a extinção do Estado, apenas advogo que ele seja encurtado em quantidade, mas desde que seja reforçado em qualidade, até interventiva. Porque, na presente confusão, a certa altura, apenas teremos encomendações feudais e compras de poder, abrindo as portas ao festival da bandocracia e da consequente vazio de competências para a defesa da autonomia nacional. Bem me lembro, quando um dia, depois da extinção das listas de controlo de preços, ainda metemos na ordem o oligopsónio da venda de gás aos hospitais, ameaçando-os com a reintrodução dos ditos, ao abrigo de legislação salazarista da economia de guerra, que nunca devia ser extinta para podermos manter os instrumentos de decisões estaduais em momentos de excepção.

Se continuarmos a governar o Estado como o chefe da casa governa a família extensa, teremos apenas agentes políticos que querem ser do oikos despote (o nome do chefe da casa em grego), ou do dominus (o chefe da domus, donde veio o nosso dono), esses padrinhos ou patrões que podem existir na oikos nomos, na economia e no mercado, mas não na polis, onde a política tem que obedecer à racionalidade ética dos princípios da justiça, os tais que vão além da racionalidade técnica do bem-estar e da segurança onde dominam a utilidade e o interesse.

Perdoem-me estes desabafos de um cultor da ciência da polis, a que, em português antigo davam o nome de repúblicos e a que hoje os técnicos da mercearia das avenças e das consultas atribuem o depreciativo qualificativo de ciências ocultas em regime de compra de serviços e de compra de poder.