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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

7.4.07

Do fundo da questão, fica o comício do partido dos fala-só

Nesta sociedade da cunhocracia, onde há poucas botas e muitos pés, não interessa o ser mas o pouco hegeliano vir a ser qualquer coisa de que possa ficar um estar que pareça o que não é e nem sequer apareça. Com efeito, todos os ministros desejam ser ex-ministros, cumprindo a máxima segundo a qual em Portugal o importante não é ser ministro, é tê-lo sido, para que se possa ser nomeado meta-ministro por um qualquer seu sucessor ministerial. O importante nesta sociedade, onde metade da elite anda de pé atrás, para que a outra metade possa colocar-se nos bicos dos pés, é que possa manter-se este fluxo de influências na troca de favores, nomeadamente entre os notáveis do bloco central de interesses, e o silêncio cúmplice entre os principais actores.

O problema está na circunstância de a grande motivação de vida da média sociológica que vota PS ou PSD sempre ter sido um emprego com lugar no quadro e, por acréscimo, uma casinha para se viver e deixar aos filhos, mesmo que fique hipotecada pela banca. Acontece que as jovens gerações já perceberam tal chão que deu uvas e que esse conceito de segurança e bem-estar já não pode ser garantido por este modelo de "Welfare State", onde Vieira da Silva não se assemelha a Beveridge. E a experiência recente mostra que há cerca de cinquenta mil jovens licenciados entre os desempregados. Estes, pelo menos, já sabem concluir que a igualdade é apenas para os que são mais iguais do que outros, nomeadamente os profissionais das jotices e já nem sequer abrange os anteriores instalados, porque o senhor Estado já nem parece ser capaz de cumprir o que contratualmente prometeu.

Já chegaram ao fim os gloriosos anos em que ainda sonhávamos numa "Europa Connosco" cheia de subsídios para a "descolonização exemplar", quando o acesso à democracia ainda era um bem escasso do clube dos ricos, sem alargamento a Leste e quando um qualquer Mário Soares ainda podia conduzir uma campanha alegre de amanhãs que pareciam cantra com "paz, pão e liberdade", sustentados pelos restos de uma "banca nacionalizada, nossa" com juros pagos pelos futuros contribuintes e muito desemprego oculto a que chamávamos socialismo democrático, com direito a longas preguiças.

Agora, chegou a era do desencanto, onde nem sequer vigora o pauliano princípio do quem não trabuca não manduca, pelo que é natural que se entre na utopia ou no saudosismo, onde o regresso de um Salazar fedorento equivale ao irrealismo do velho PREC que foi efectivamente bacalhau a pataco depois de quarenta e oito anos da longa noite fascista. Hoje, mesmo com socialistas no poder, chegou a eterna lei da selva, do salve-se quem puder, onde o trabalho já deixou de ser um posto de vencimento, com lugar definitivo no quadro dos que esperam ponte antes dos feriados, quando todos éramos excedentes e disponíveis, mas com a plenitude do vencimento e direito à carreira, por prescrição.

Acabou a dolce vita do comunismo burocrático e dos chefes sem índios e já não chegam os engenheiros do macromonetarismo, quando o método Alves dos Reis ainda era o segredo da razão de Estado. Agora, todos temos de fazer as contas em euros, todos somos vigiados por quem também vigia o nosso Tribunal de Contas e o povo unido afinal já foi vencido. Nesta terra de pedir ao São Pedro que nos dê sol para virem mais turistas, quase só podemos produzir almoços e meias de leite com os ingredientes dos outros, isto é, todos somos velhos aposentados encostados a barcaças que já não pescam, enquanto jardineiros camarários vão transplantando hortelã para canteiros, graças às taxas recebidas nos hotéis e nas muitas lojas de "real estate", à espera de desempregados e reformados da "European Union" que, para aqui, vêm ver chegar o crepúsculo das vidas.

Todos somos restos do grande partido dos "fala só", às espera que uma qualquer camioneta do partido nos leve um dia para a festa do Avante, para a romaria à Senhora de Fátima ou para os estados gerais do PS, a fim de darmos muitos vivas, com uma sande de lombo assado, pelo encerramento de mais um serviço de urgência nocturna neste nosso desacampado da província. Agora, quem manda é quem manda no Teixeira dos Santos e os sindicalistas já não são dos TSD, os tais que andavam nos centros de formação do Torres Couto e que levavam a nossa D. Maria, a da Mariani, a dizer-se do centro-esquerda e a ler o Thomas Mann, que não escreveu a Utopia.

Vamos todos limpar o pó da velha lareira, antes que chegue esta nuvem negra que ameaça chuva, nesta incerta primavera, onde, todos vestidinhos de abafas, assim perto das ondas, vamos olhando o mar como há cinco séculos, mas já sem forças para partirmos desta praia de uma pátria onde não há moralidade e onde não comem todos.