a Sobre o tempo que passa: Um pedaço do Portugal à solta à procura do abraço armilar

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

29.3.07

Um pedaço do Portugal à solta à procura do abraço armilar



Foi com emoção que, ontem, tive a honra de conferenciar num dos templos da pátria e da liberdade, no Rio de Janeiro, o Real Gabinete Português de Leitura, fundado há 170 anos por exilados liberais portugueses, agora instalado num edifício neomanuelino, inaugurado em 1887, onde se guarda uma primeira edição d "Os Lusíadas" de 1572, ou o manuscrito do "Amor de Perdição", que o presidente António Gomes da Costa me permitiu consultar. Porque esta instituição, de matriz azul e branca, isto é, liberal e liberdadeira, ainda vive como pensa, como um pedaço de Portugal à solta, tentando cumprir a ideia maior do abraço armilar, fiel à matriz dos homens livres que a fundaram e sucessivamente recriaram (aqui deixo algumas imagens do espaço e das pinturas que nela se guardam, de Camilo a um quadro de Malhoa sobre a descoberta do Brasil). E não foi por acaso que esta instituição teve a coragem de recordar alguém que, no ano de 1980, teve o seu corpo em câmara ardente nesse local.

Tentei identificar Marcello Caetano com um certo tempo de vésperas daquele que ainda hoje nos mobiliza, e que talvez faça aquecer em valor mais altoespera, esfera e esperança o necessário abraço armilar. Tentei falar de um certo tempo português, para o qual não tem sido adequado o verso épico, mas sobre o qual também já chegou a hora de pormos fim às inverdades e aos insultos. Porque Marcello era racional-normativo em demasia para poder erguer uma nova legitimidade carismática. Maquiavélico de menos para poder instrumentalizar a legitimidade tradicional do patrimonialismo, isto é, dos donos do poder e dos senhores da guerra



E sempre foi paradoxalmente português: o jovem monárquico neo-integralista que se assumiu como republicano; o adolescente para-fascista da revista Ordem Nova constitucionalista que teve de manter aparelhos autoritários de repressão; o de 1926, que nos quis transformar em Estado de Legalidade; o corporativista que lançou a reforma capitalista; o professor de direito que tem de ser chefe de generais em guerra.

E foi no Real Gabinete que recordei o Brasil como permanente terra de exílios. Dos liberais expulsos pelo miguelismo. Dos miguelistas exilados depois da derrota (e lá consultei na Biblioteca um exemplar da tradução que José da Gama e Castro fez no Rio de Janeiro a "The Federalist", em 1840, mas sem indicação do nome do autor). Dos monárquicos, com o 5 de Outubro (foi em 1920 que Sérgio aqui editou o seu primeiro volume dos Ensaios, tal como Carlos Malheiro Dias aqui foi presidente do RGPL). Dos deserdados do 28 de Maio, como Fidelino de Figueiredo, ou das vagas sucessivas de expulsos pelo salazarismo, como Jaime Cortesão, Sarmento Pimentel, Agostinho da Silva, Henrique Galvão ou Humberto Delgado e tantos outros, durante tantas décadas.

Basta detectar os sinais dessa revolta em discretos símbolos que se conservam nos átrios e tectos do Real Gabinete, homenagenado a passagem do caos à ordem e apontando os nossos Estados Unidos da Saudade, como simples semente da República Universal, onde fomos e poderemos voltar a ser bandeirantes do tal Império do Espírito Santo de que falava mestre Agostinho da Silva e que muitos continuam a não querer compreender, porque rejeitam os sistemas morais, as alegorias e os símbolos que nos dão rota humanista de libertação.





Marcello, entre a renovação e a continuidade, hesitou nas estratégias porque duvidava dos fins, desde a instauração de uma efectiva democracia à própria independência das possessões africanas. Sabia, como ninguém, analisar as questões, fazer diagnósticos, criticar. Ficou sempre titubeante quando tentou usar o bisturi da terapêutica.

Se foi sincero quando procurou liberalizar o regime, já não foi capaz de admitir que o feitiço liberalizante se poderia voltar contra o próprio feiticeiro e, quando a ala liberal propôs, para a reforma, caminhos diversos dos programados pelo Presidente do Conselho, deu-se a inevitável ruptura, com Marcello a comprimir-se entre yesmen e propagandistas menores, ao mesmo tempo que os chamados ultras, ameaçando conspirar através de Américo Tomás, transformaram o decadente cônsul num homem só, cada vez mais enredado num cepticismo pessimista. Assim se geraram as circunstâncias golpistas de 1974, com o feitiço autonómico a voltar-se contra o feiticeiro e os militares ultras a não repetirem o modelo de Santos Costa contra Botelho Moniz.



Marcello se, num assomo salazarista, ainda conseguiu deter autoritariamente o golpe dos militares spinolistas de 16 de Março de 1974, mostrou-se incapaz de uma medida preventiva que atalhasse os desenvolvimentos subversivos do Movimento dos Capitães. Podia ter forças militares e para-militares suficientes para conservar o poder, mas não soube ser resistente. E talvez tenha sido traído pelos que eram ou pareceram fiéis. Preferiu ser avestruz no indefensável quartel do Carmo, lavar as mãos como Pilatos e chamar pateticamente Spínola para o poder não cair na rua.