a Sobre o tempo que passa: Entre vanguardistas e derrotados políticos, sejamos bandeirantes e regeneradores

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.3.07

Entre vanguardistas e derrotados políticos, sejamos bandeirantes e regeneradores

Depois da missão cumprida, foi continuar a peregrinação por esta antiga capital de Portugal, ainda saudoso do esplendor de livros e de pedra talhada do Real Gabinete, onde recordo os sinais e testemunhos deixados por Ramalho Ortigão, Joaquim Nabuco, Gago Coutinho e António José de Almeida, nesta cadeia de gerações que unem os nossos sucessivos sonhos e paraíso. Quase comparo esta visita à viagem que, outora, fiz à sinagoga portuguesa de Amsterdão. Porque são quase sempre os chamados heterodoxos que resistem na profunda tradição da lusitana antiga liberdade que sempre foi de antes quebrar do que torcer.

E, no silêncio do Real Gabinete, lá conversei com meus avoengos mestres, de Herculano a Camilo, de Carlos Malheiro Dias a Jaime Cortesão, nessa constante procura de um Portugal mais do que Portugal, esse sonho que vai além da pátria física da terra dos mortos e se pode sempre elevar em navegação e bandeira, fazendo dos sertões do tempo o espaço do próprio mar-oceano. Especialmente quando a terra-mãe das origens se torna patroa e madrasta, presa nas teias dos donos do poder e de alguns dos restos dos senhores da guerra, com muitos herdeiros de inquisidores, das juntas de providência literária e das reais e republicanas mesas censórias, amarrados às vistas curtas dos conjunturais politicamente correctos, de que são sorridentes escravos, incluindo os ministerais.

No templo do Real Gabinete se guardam sinais de sonhos e contemplações, prenhes de tradição e de futuro, especialmente daquele quinto império do poder dos sem poder, onde a pátria da língua portuguesa não é senão mera super-nação futura. Aliás, em plena turbulência doméstica, sempre houve cientistas que se puseram a caminho do Sul, como Gago Coutinho, com Os Lusíadas que ofereceu ao Real Gabinete, numa mão, e o sextante, na outra.

Sempre houve cultores do verbo e da autenticidade, como António José de Almeida que aqui veio em 1922, agradecer ao Brasil o ter-se tornado independente. Sempre houve António Ferro, clamando pelos Estados Unidos da Saudade, João de Barros ou Nuno Simões. Parafraseando Ramalho, assinale-se que mesmo que haja um cataclismo nos estreitos limites da Europa, não precisamos de jangadas de pedra, porque já nos reproduzimos aqui, neste Portugal maior, neste Portugal à solta, dando novos mundos ao mundo, quando nos diluímos na diferença dos outros, que não considerámos inferno.

Paupérrimas questiúnculas domésticas, como as do colégio eleitoral da RTP que elegeu, a título póstumo, como os melhores portugueses de sempre, dois políticos profissionais que, nunca souberam, pelo saber de experiência feito, que, muito lusotropicalmente, o pecado não mora do lado de baixo do Equador. Esses votantes, dignos representantes de certo grupo dos portugueses que restam na Europa, têm quase todos medos do enjoo da viagem, preferindo o império dos merceeiros ou os campos de concentração em que se enregelou a utopia do D. Sebastião científico.

Uma pequena nota para o jornal "Público" de hoje que relata, sem o picante da escandaleira, a sessão realizada anteontem no RGPL, mas onde assume o paradoxo de atribuir uma frase da minha autoria a quem nunca a poderia proferir, isto é, a um dos ministros derrubados pelos capitães de Abril. Fui eu, que há muito deixei de ser secretário da AICP, que disse: os regimes, em Portugal, caem de podre porque, muitas vezes, ultrapassam todos os prazos de validade que lhe garantiam autenticidade. Só que a apatia e o indiferentismo gerados pelas manobras da elite no poder, lançam o colectivo numa inércia cobarde, inversamente proporcional ao activismo dos oposicionistas, cujo vanguardismo, marginal face à opinião pública, resulta, precisamente, da frustração de não se sentirem, entre ela, como peixe na água.

Repito-o num contexto diacrónico: porque temos tendência para fazer durar e durar cinzentismos decadentistas, desde o crepúsculo da monarquia liberal, desde o Ultimatum ao 5 de Outubro (20 anos), à nova república velha pós-sidonista (nove anos, desde o magnicídio do Rossio à subida de Salazar à ditadura das finanças), passando pelo velho Estado Novo (16 anos, desde as eleições de Delgado em 1958 ao contra-28 de Maio de 1974).

Porque quando as crises se difundem nas consciências individuais daquelas maiorias sociológicas que preferem as delícias da servidão voluntária ao inconformismo da necessária revolta dos escravos, quase sempre tropeçamos com as degenerescências da ditadura da incompetência e da compra do poder, enquanto os sistemas entram em pilotagem automática e as elites vegetam num deserto de ideias, com pensadores feitos intelectuários, procurando os restos que caem da mesa do orçamento ou dos subsídios dos mecenas.

Consolida-se assim um situacionismo bonzo, típico dos blocos centrais de interesses politiqueiros e negocistas, onde a ilusão de alternância fomenta o rotativismo das duas faces da mesma moeda, a que hoje damos o nome de PS e PSD. Acontece até que os controladores sistémicos, mais ou menos banco-burocráticos, liquidam as verdadeiras alternativas que podiam dar-nos o urgente golpe de Estado sem efusão de sangue, como Popper chamou às mudanças pela via eleitoral, ao promoverem canhotos e endireitas, para além de fomentarem o medrar da borbulhagem dos extremistas da esquerda e dos extremistas da direita, apostados em morderem nas canelas uns dos outros. Por mim, gostaria que este regime não caísse apodrecido. Não há por aí um subversivo Herculano que comece a pensar a regeneração mesmo que seja com Saldanha, Fontes e Rodrigo? Eu, que me assumo como histórico, estou disposto a filiar-me no partido de Anselmo Braamcamp e a não o abandonar mesmo depois do regicídio.