a Sobre o tempo que passa: Contra os argumentos anti-referendários dos velhos manuais dos inimigos da democracia

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

10.7.07

Contra os argumentos anti-referendários dos velhos manuais dos inimigos da democracia


Sócrates, o nosso representante, foi ao número 10 da Rua Que Desce encontrar-se com Gordon, o representante trabalhista do contraciclo europeu, e já não com Blair, o seu ex-ídolo e paradigma. Sócrates foi ali reconhecer que, também em Londres, tal como em Paris e Berlim, se vive na era pós-guterrista que já não segue a música celestial de uma convenção que gostava de poder ter dito que os referendos são uma espécie de roleta russa que deve ser apreendida pela ASAE.


Sócrates já deve ter aprendido que esse defunto neo-iluminismo não se dá bem com um Reino Unido que nunca precisou de uma constituição escrita para ser a pioneira ocidental da democracia antitotalitária da sociedade aberta e do pluralismo. Tal como deve começar a notar como é possível defender o interesse nacional e a vontade de ser independente, sem necessidade de recurso ao conceito de Estado de Maquiavel, Bodin e Hobbes, com o consequente centralismo soberanista.


É por isso que dou razão a Jean Monnet, quando este dizia que o projecto europeu deixava de o ser se os britânicos nos não ensinassem esses aparentes paradoxos. Tal como aconselhou a Adenauer para este aceitar o princípio da cooperação política de Charles de Gaulle, nesse modelo do "oui par le non".


Com efeito, os britânicos representam o essencial desse modelo pré-absolutista do político, idêntico ao que mantínhamos antes da importação da inquisição castelhana e do terramoto pombalista do capitaleirismo concentracionário. Daí que tal paradigma possa compensar a estreiteza de vistas de certo jacobinismo que marca a nossa classe política, quando esta não consegue soletrar coisas como a unidade na diversidade, o tal pluralismo que tanto exige o dividir para unificar como a geometria variável do projecto europeu.


De uma Europa que deve ter como ideia de obra "la nation des nations" de Montesquieu, tal como em termos de organização política se deve estruturar, não como uma democracia única, mas antes como uma democracia de muitas democracias, sem recurso ao pronto a vestir de qualquer aula de um semestre de direito constitucional no hipermercado de Bolonha, onde não entram ideias de pluralismo e de federalismo à Proudhon.


Compreendo os conselhos de Guterres e os manifestos arrependimentos de Freitas do Amaral sobre a questão do referendo, quando não reconhecem que um "não" francês vale mais do que um eventual "não" português, ou quando não percebem que as exigências negociais polacas são destruídas pelo mesmo anedotário comunicacional que, face a excepções bem maiores, já elogia o pragmatismo diplomático britânico, nesse preconceito de quem vê a geometria variável segundo o princípio da hierarquia das potências.


Rejeito, contudo, que a intervenção directa dos povos europeus na sua comunidade de destino possa ser menosprezada pelo recurso às velharias argumentárias dos tecnocratas, dos déspotas e dos próprios inimigos da democracia. Mesmo quando disfarçam os seus encontros imediatos com os amanhãs que reformam com certa retórica antiplebiscitária.


Seria melhor que todos lessem os papéis que foram acordados em Bruxelas. Onde podemos ler que vivemos dois anos de incerteza, que o período de reflexão passou... o debate público passou. Que importa uma CIG, o mais rapidamente possível. Para que se dê uma espécie de juridificação do facto consumado, sem o recurso à música celestial de um convencionalismo que parecia criar uma espécie de super-Estado.


Mesmo que Londres rejeite a unificada política externa e de segurança, ou que não aceite a Europa Social, os papéis bruxelenses já sugeriram datas: uma reunião informal de ministros dos estrangeiros em Viana do castelo, em 8 e 9 de Setembro, e uma cimeira informal em Lisboa, em 18 e 19 de Outubro.
Que a diplomacia portuguesa tenha êxito, é a vontade que deve ter um qualquer patriota, mesmo que sejamos da oposição ao nosso máximo representante e caixeiro viajante.


Só que isso não significa cedência às teses da representação qualitativa de Marsílio de Pádua, no seu Defensor Pacis, de 1324. Os povos europeus, a universalidade dos cidadãos europeus, devem continuar a pugnar por uma representação quantitativa, pela medida da maioria dos cidadãos, considerando que o povo é superior ao princeps, à pars principains que muito iluministicamente se assume como a valentior pars do método habsburguiano e bismarckiano da eurocracia, nas suas tentações de despotismo iluminado.


Quando a diplomacia de Sócrates acabar a fase do projecto de tratado, a questão de referendo vai voltar a pôr-se. E a palavra dada nas campanhas eleitorais pelos principais partidos, transformada em contrato social, não pode ser revogada por uma entrevista de Guterres e por mais um arrependimento de Freitas do Amaral. Ainda não chegámos ao despotismo iluminado.
Por mim, prefiro ser fiel aos princípios constitucionais das Cortes de 1385 e à outra bolonhesa, a de João das Regras, quando se consagrou constitucionalmente, o princípio do QOT, o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido. Foi assim que fizemos a primeira revolução pós-feudal da Europa. Antes de Maquiavel ter inventado o conceito de Estado (1531). Antes de Jean Bodin ter delineado o conceito de soberania (1576). Foi assim que demos novos mundos ao mundo. Não foi com Miguel de Vasconcelos, a traduzir em calão a ideias que convinham ao Habsburgos. Nem com Cristóvão de Moura a arranjar tacho em Bruxelas. Foi, por Portugal, pela Europa e pela cosmopolis, da ideia de nação como caminho para a supernação futuro, em abraço armilar.


PS: Nada digo sobre os prós e contras de ontem, a pretexto da campanha eleitoral lisboeta. Em entrevista à Lusa, já ontem dei o meu contributo de revolta. Tal como, também ontem, dei o meu testemunho sobre a presidência europeia ao RCP, na sequência do debate de sábado na mesma estação e que, por estes dias, aqui pormenorizarei.