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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

19.8.07

"Há uma pequena legião de leitores desconhecida que são como antenas ocultas a recolher as vibrações destes eremitas do pensamento"...


Porque vou tentar resistir aos cheiros do esgoto, aqui vai o postal que tentei editar. Pela manhã de sábado, tinha intenção de homenagear Ubirantan Borges de Macedo, um velho amigo do pensamento, brasileiro e liberal, recentemente falecido, utilizando o pretexto de recordar os laços familiares que o ligavam a Fidelino de Figueiredo. Porque não gosto desta sociedade funerária e comemorativa, decidi dar conta de uma colectânea de ensaios que este último mestre editou quando eu nasci, "O Medo da História" e que, graças aos acasos dos alfarrabistas, me veio parar à posse. Por isso, prefiro viver o pensamento e reencontrar algumas das mais herculianas páginas que a cultura lusída produziu na primeira metade do século XX.


Lá encontrei uma clássica citação de Chateaubriand sobre a degenerescências das aristocracias que, começando por ser de serviços, passam depois para os privilégios (os fidalgos, os filhos de algo que já são nobreza), acabando por chafurdar na fase crepuscular das vaidades. Daí ter encontrado em Fidelino uma certa distinção que merece ser meditada pelos nossos neoliberais de tradução em calão, alguns dos quais não admitem que o liberalismo nunca se confundiu com o capitalismo, nem com o negocismo, mas antes com "a vida da Europa do século XIX" que se "tornou um ideal para todas as populações da terra" (p. 67).


Porque o liberalismo sempre foi a "tolerância cavalheiresca", fundada "na presunção de relatividade para todas as orientações políticas" (p. 87). Porque é "o melhoramento individual pela libertação" (p. 83), marcado pela ideia de dialéctica, ou de desenvolvimento, expressa por Croce: "que mercê da diversidade e oposição das forças espirituais, amplia e nobilita continuamente a vida e lhe confere seu único e inteiro sentido" (p. 81).


Por outras palavras, o liberalismo é "uma concepção metapolítica" que "transcende a teoria formal da política". É "uma infinita tolerância, portanto a coexistência pacífica de todas as ideias e todas as orientações do espírito" (p. 73).


Fidelino reconhece que "há uma pequena legião de leitores desconhecida que são como antenas ocultas a recolher as vibrações destes eremitas do pensamento" (prefácio). Porque "uma verdade nova tem de esperar a sua hora de converter-se em valor de cultura geral, em ideia ou atitude de moda, em técnica industrial e exploração económica" (p. 35). Porque "o pensador quer entender e saber e prever; o político só quer chegar ao poder, conservá-lo e alargá-lo... a mente política procura dominar o relativo e ocasional, como o navegante à vela, perito em ventos e suas surpresas caprichosas, ao passo que a inteligência pura em tudo busca o absoluto" (p. 36).


Até sabe que "a imprensa deixou-se dominar por forças menores que a dela, como o gigante Gulliver pelos humúnculos liliputianos" (p. 42).


Fidelino, o militante sidonista e do 28 de Maio, exilado pela Ditadura, compreendeu pelo magistério professor as agruras desses navegantes à vela. Preferiu a amizade de Manuel Bandeira e ir para a distância do português à solta, levando, do breve exílio espanhol, as lições pedagógicas da krausista Institución Libre de Enseñanza.


Por isso aconselho a leitura do belo artigo de Ricardo Vélez Rodríguez sobre o autor, onde se relata a atribulada entrada de Fidelino na Academia Brasileira de Letras, onde tinha como concorrente um certo professor da entidade que antecedeu a minha escola e que acabou por não vencer, porque foi então recordado que, dois anos antes, tinha sido o autor científico de belas análises racistas, quando se insurgia contra os perigos das “intimidades” da mestiçagem, das quais, “não raro provinham, em famílias ilustres, comprometedoras nódoas pigmentares, estranhos cabelos encrespados, que, em vez de atavismos remotos da raça, denunciavam cruelmente inquinações recentes de respeitáveis estirpes fidalgas”.


Porque “o mestiçamento é uma lotaria germinal que tanto pode dar bons como maus resultados” e que seria "intuitivo que, quanto mais intenso e variado for o mestiçamento e mais activa a interferência social e política dos mestiços na vida portuguesa, mais rápida e fortemente se desfigurará a fisionomia tradicional da Pátria e irá desaparecendo o que de mais nobre e próprio existe no valor português. Seria a dissolução do Portugal multissecular, o fim de uma cadeia vital ininterrupta e gloriosa".


Essa pesada herança, que ainda nos polui, pode ainda estar viva se não a denunciarmos, mesmo sem lhe darmos nome. Por acaso, as denúncias que fiz nos postais anteriores surgiram quando, ao ir à Google, procurar o nome Fidelino, deparei com uma ficha da minha autoria, no tal CEPP, a que não consegui ter acesso por causa do limpamento, o tal que aguarda cumprimento da ordem do "big brother", para ser apagado o apagão. O liberalismo continua a sonhar direito, apesar dos "links" tortos de certas memórias vérmicas que já não são da nobreza nem dos fidalgos, mas das vaidades.