Sobre o tempo que passa
Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...
21.2.08
Em momentos de decadência, há certos dias em que sentimos, na pele, os riscos vingativos de certa canalha de unhas aduncas que subocupou os interstícios do poder dito democrático, confirmando como continua a mentalidade da persiganga, mesmo quando a facada é comandada a partir dos sofás de coiro dos altos gabinetes. Os descendentes dos moscas, dos formigas e dos bufos continuam a não compreender que o poder dos sem poder, o tal que alimenta a saudável desobediência individual e que há-de sublimar-se em resistência, não é passível de distribuição de cima para baixo. O poder antipoder, do cidadão contra os poderes, apenas se vai semeando, de centro a centro, de consciência a consciência, através da permanente corrente da libertação, daqueles que acreditam que o desenvolvimento impõe que se cresça não apenas pela estatística, mas sobretudo que se cresça para cima e por dentro.
Ainda ontem, em dia em que circunstâncias da vida pessoal e familiar me obrigaram a não poder comparecer num acto público, tive que recordar que, aqui e agora, não há o maniqueísmo do público contra o privado, que alguns traduzem como conflito entre liberais e socialistas, mas antes, as águas pantanosas da chamada economia mística, daqueles que seguem o dito de Ramada Curto, segundo o qual gostamos de nacionalizar os prejuízos e de privatizar os lucros.
O acórdão do Tribunal Constitucional condenatório da Somague e do PSD permitiu que se iluminasse uma zona da nossa vida pública que, há mais de um quarto de século, permanecia na clandestinidade, enrodilhando a democracia em zonas pouco transparentes, onde, por trás das cortinas, circula o caciquismo, o pato-bravismo, os autarquinhas, os politiqueiros partidocratas e até os futebolíticos. Aliás, só recentemente se começaram a ver as pontas do "iceberg" do enredo da mulher de César.
É evidente que a democracia que temos é um péssimo regime político, mas o menos mau de todos os que, até agora, tivemos. Daí podermos dizer que todos os líderes, históricos ou presentes, do PS, do PSD e do CDS, os tais partidos "catch all" que regem o nosso centrão, todos esses líderes donde nos vem a reserva de recrutamento dos primeiros-ministros, dos ministros, dos presidentes da república e dos deputados, todos eles, para poderem ascender dentro da máquina partidária, ou por entre os corredores e gabinetes da luta interna pelo poder, tiveram que fazer pactos com o diabinho dos caciqueiros, ficando, posteriormente, condicionados.
Assim, todos ficámos enredados no neofeudalismo da engenharia das cunhas, da subsidiocracia, do amiguismo, do nepotismo e do clientelismo. A partir desta infra-estrutura mental, gerou-se uma rede de pactos de silêncio e de cumplicidade que nenhum jornalismo de investigação pode descobrir, até porque quase ninguém consegue descodificar as vastas empresas ditas de consultadoria e de "outsourcing", ou os mecanismos da parecerística. Uma "network" que, depois, se refinou pela engenharia da alta finança e das sociedades inter-estaduais de tráfego de influências, tornando-se transnacional e diluindo-se em mais vastas formas da tradicional pirataria global dos colarinhos brancos e dos "yuppies", onde até D. Sebastião e os seus pretensos teóricos só anseiam pela prebenda da sociedade de casino.
Estes caldos de cultura, que partiram do velho caciquismo de regeneradores e progressistas, e, depois, passaram ao "adesivo" do republicanismo e ao "virasacas" do salazarismo, chegaram, mais recentemente, à modernidade da integração europeia e da globalização, gerando o verdadeiro estado a que chegámos. O tal que não é de esquerda nem de direita, nem socialista nem social-democrata, nem democrata-cristão nem conservador, nem republicano nem monárquico, nem miguelista nem pedrista, nem salazarento nem abrileiro, mas mero efeito da própria cultura de mestre-escola do tal senhor director que não passa de um tiranete vingativo, à maneira do intendente policiesco da viradeira, alimentado por relatórios de espiões de costumes e de pretensas traições à barriguinha dos interesses que usurpa o nome de pátria.
É toda uma sucessão de chefes e subchefes de um micro-autoritarismo sub-estatal que enxertaram a incompetência no corno de cabra politiqueira, disfarçando-os em adornos tecnocráticos com que vão pintalgando a aparente modernidade tecnológica. Contudo, os tiranetes não passam de analfabetos funcionais que nada sabem do "hardware", que mandam comprar, e do "software", que contratualizam a recibos verdes. Mas gostam de ser fotografados ao lado de um écran de PDA, com que confundem o promontório dos séculos.
Muitos deles irão, depois da inevitável queda da cadeira, ser revelados, em seus pés de barro, na barra de um tribunal, talvez por causa de um qualquer negócio de intendência e economato, mas, por enquanto, continuam a comandar o aparelhismo típico dos sargentos verbeteiros e ainda esperam que os chamem para as alturas gabinetais da mesa do orçamento, ou para o sucedâneo de um lugar de administrador, por cunha do Estado, numa qualquer empresa de economia mística.
Nenhuma dessa gentalha gosta da cultura do antes quebrar que torcer, da lusitana antiga liberdade, e por isso, contra a autenticidade da cidadania, o poder nu, das instituições sem ideia de obra, manifestações de comunhão entre os seus membros e total desrespeito das regras do Estado de Direito, continua a mobilizar toda a herança do inquisitorialismo, com a permanecente procissão dos bufos que sonham, todos os dias, com os autos de fé da terra e dos corpos queimados...
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